Ubirajara: Lenda Tupi. José Martiniano de Alencar

Ubirajara: Lenda Tupi - José Martiniano de Alencar


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      Ubirajara: Lenda Tupi

      I

      O CAÇADOR

      Pela marjem do grande rio caminha Jaguarê, o joven caçador.

      O arco pende-lhe ao hombro, esquecido e inutil. As flechas dormem no coldre da uiraçaba.

      Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar na grama, zombando do caçador.

      Jaguarê não vê o timido campeiro; seus olhos buscam um inimigo capaz de rezistir-lhe ao braço robusto.

      O rujido do jaguar abala a floresta; mas o caçador tambem despreza o jaguar, que já cançou de vencer.

      Elle chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fojem espavoridos quando de lonje o presentem.

      Não é esse o inimigo que procura, porém outro mais terrivel, para vencel-o em combate de morte e ganhar nome de guerra.

      Jaguarê chegou á idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela gloria do guerreiro.

      Para ser aclamado guerreiro por sua nação é precizo que o joven caçador conquiste esse titulo por uma grande façanha.

      Por isso deixou a taba dos seus e a prezença de Jandira, a virjem formoza que lhe guarda o seio de espoza.

      Mas o sol tres vezes guiou o passo rapido do caçador através das campinas, e tres vezes como agora deitou-se além nas montanhas da Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.

      A sombra vai decendo da serra pelo vale e a tristeza cae da fronte sobre a face de Jaguarê.

      O joven caçador empunha a lança de duas pontas, feita da roxa craúba, mais rija que o ferro.

      Nenhum guerreiro brandiu jámais essa arma terrivel, que sua mão primeiro fabricou.

      Lá estaca o joven caçador no meio da campina. Volvendo ao céu o olhar torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito de guerra.

      O bramido rolou pela amplidão da mata e foi morrer lonje nas cavernas da montanha.

      Respondeu o ronco da sucurí na madre do rio e o urro do tigre escondido na furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao dezafio do caçador.

      Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além no grosso tronco da emburana.

      A copa frondoza ramalhou, como as palmas do coqueiro ao sopro do vento, e o tronco gemeu até á raiz.

      O caçador repouza á sombra de sua lança.

      Salta uma corça da mata e veloz atravessa a campina.

      Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta embebida no arco flexivel.

      Ergue-se Jaguarê.

      Seu olhar ardente voou, sofrego de encontrar o inimigo que lhe tardava.

      Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no rosto sombrio.

      Pela faxa côr de ouro, tecida das penas do tucano, Jaguarê conheceu que era uma filha da valente nação dos Tocantins, senhora do grande rio, cujas marjens elle pizava.

      A liga vermelha que cinjia a perna esbelta da estranjeira dizia que nenhum guerreiro jámais possuira a virjem formoza.

      A corça veiu cair aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira da joven caçadora que a seguia de perto.

      A virjem reconheceu o cocar da nação que na ultima lua chegára aos campos do Taari e da qual os pajés tinham dado noticia.

      – Guerreiro araguaia, pois vejo pela pena vermelha de teu cocar que pertences a essa nação valente; se pizas os campos dos Tocantins como hospede, bem vindo sejas; mas se vens como inimigo, foje, para que tua mãi não chore a morte de seu filho e tenha quem a proteja na velhice.

      – Virjem dos Tocantins, Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Elle piza os campos de teus pais como senhor. Tu és sua prizioneira. Não que vencer a corça timida seja gloria para o caçador; mas tu chamarás o inimigo que elle espera.

      – Se o veado te der a sua lijeireza, joven guerreiro, elle não te servirá senão para ver o rasto de meu pé antes que o vento o apague.

      A linda caçadora desferiu a corrida pela imensa campina. Após ella se arremessou Jaguarê, que muitas vezes vencera o tapir.

      Mas a virjem dos Tocantins corria como a nandú no dezerto, e o caçador conheceu que seu braço nunca a poderia alcançar.

      Travou do arco e o brandiu. A seta obedeceu-lhe, pregando no tronco do assaí a faxa que flutuava ao sopro do vento.

      – A filha dos Tocantins tem no pé as azas do beija-flôr; mas a seta de Jaguarê vôa como o gavião. Não te assustes, virjem das florestas; tua formozura venceu o impeto de meu braço e apagou a cólera no coração feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te possuir.

      – Eu sou Arací, a estrela do dia, filha de Itaquê, pai da grande nação Tocantim. Cem dos melhores guerreiros o servem em sua cabana para merecer que elle o escolha por filho. O mais forte e valente me terá por espoza. Vem comigo, guerreiro araguaia; excede aos outros no trabalho e na constancia, e tu romperás a liga de Arací na proxima lua do amor.

      – Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais, onde Jandira lhe guarda o seio de espoza, para ser escravo da virjem. Elle vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. Torna á taba dos Tocantins e dize aos cem guerreiros cativos de teu amor, que Jaguarê, o mais destemido dos caçadores araguaias, os dezafia ao combate.

      – Arací vai, pois assim o queres. Se fores vencido, ella guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos viram mais belo caçador. Se fores vencedor, será uma alegria para a virjem do sol pertencer ao mais valente dos guerreiros.

      A virjem disse e dezapareceu na selva. Os olhos de Jaguarê seguiram o passo lijeiro da formoza caçadora, como o guachimim que rasteja a zabelê.

      Quando ella dezapareceu, o joven caçador recostou-se ao tronco da emburana e esperou.

      Do outro lado da campina assoma um guerreiro.

      Tem na cabeça o canitar das plumas de tucano, e no punho do tacape uma franja das mesmas penas.

      É um guerreiro tocantim. De lonje avistou Jaguarê e reconheceu o penacho vermelho dos araguaias.

      As duas nações não estão em guerra; mas sem quebra da fé póde um guerreiro cansado do longo repouzo oferecer a outro guerreiro combate leal.

      Quando o tocantim armou o arco, Jaguarê já tinha brandido o seu e disparado no ar uma seta, mensajeira do dezafio.

      Respondeu o guerreiro disparando tambem uma flecha no ar, para dizer que aceitava o combate.

      Então os dois campeões caminharam um para o outro com o passo grave e pararam frente a frente.

      – Eu sou Jaguarê, filho de Camacan, chefe da valente nação dos araguaias, que vem de lonje em busca da terra de seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador das florestas. Mas Jaguarê despreza a fama de caçador; elle quer um nome de guerra, que diga ás nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Se tua nação te aclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; se não, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche o tacape virjem de Jaguarê.

      – O caraiba guiou teu passo ao encontro de Pojucan, o matador de gente, guerreiro chefe da terrivel nação tocantim, que enche de terror as outras nações. Ha tres luas, desde que fujiram espavoridos os barbaros Tapuias, que Pojucan não combate; e seu tacape tem fome do inimigo. Tu não és digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucan se compadece de tua mocidade e consente em combater comtigo. Terás a gloria de ser morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua sorte.

      – Jaguarê agradece a Tupan que te fez um grande guerreiro e o chefe mais feroz da terrivel nação tocantim, Pojucan, matador de gente. A tua morte será a primeira façanha do caçador araguaia e lhe dará um nome de guerra que se torne o espanto dos seus e o terror das outras nações.

      Os dois campeões recuaram


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