O Regicida. Castelo Branco Camilo

O Regicida - Castelo Branco Camilo


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d'um padre! Amou-o? diga, mulher impudica, amou-o?

      –Pelas chagas de Jesus Christo!—volveu ella, ajoelhando-se-lhe novamente—Eu sei que vou morrer… Se me tu não matares, heide eu matar-me!. Ai! minha querida filha!… Ó Domingos, não desampares aquella creancinha que é tua filha!…

      –Matar-se!—replicou sarcasticamente—As mulheres na sua condição não se matam, porque… estão mortas… Quem teve a coragem de se deshonrar perdeu a força moral que dá a rehabilitação…

      –Eu era uma innocente…—soluçou Maria Isabel—Não sabia o que era deshonra… Passára a minha infancia entre meus paes. Minha mãe era tão virtuosa que nem me precaveu contra a maldade do mundo…

      E, como os arrancos lhe embargassem a voz, o marido, que parecia ferozmente interessado na confidencia, disse:

      –Continue… Vae-me contar por miudos a historia da sua… queda… Conte.

      –Oh!.. pelo divino amor de Deus!—clamou ella—que queres saber d'esta desgraçada?… Eu só soube que estava perdida, quando te amei, porque então senti que era indigna do teu amor!..

      –E não obstante… diga o mais… Conhecendo-se indigna, fez-me descer na rampa da infamia para me nivelar com a senhora!..

      –Pois bem!—bradou ella com vehemente resolução—Esmague-me, que eu sou punida, e o senhor vingado!

      –Heide reflectir…—retrocou Domingos Leite serenamente—Nem todas as mulheres são dignas de morrerem ás mãos de homens honrados. Entretanto, dê-me o infernal praser de lhe ouvir contar a historia dos seus primeiros amores.

      E, dizendo, sentou-se, indicando-lhe com um tregeito de cabeça que se assentasse a seu lado. Ella hesitou; mas um arremêsso de impaciencia, e duas fortes punhadas que elle deu no espaldar do preguiceiro, incutiram no animo de Maria Isabel a suspeita de não sahir com vida de tamanha angustia.

      Sentou-se ella, a tremer, com as mãos cruzadas sobre o peito e os olhos piedosos fitos no perfil do marido.

      –Conte lá,—disse elle com os cotovellos apoiados nas pernas, a face entre as mãos, e os olhos postos no pavimento—conte desde o principio essa historia… Como foi que o padre lhe fez saber que a desejava, e como foi que a menina de quinze annos acceitou as doutrinas do mestre.

      O dialogo seguido a esta intimação demorou-se meia hora, que devia figurar-se um dia de tormentos a Maria Isabel: tão dilacerantes cortavam as perguntas no pudor d'aquella mulher.

      Porém, finalmente, no rosto de Domingos Leite Pereira já vislumbravam sentimentos de compaixão, porque os do rancor tinham posto a pontaria em outro alvo.

      As ultimas palavras d'elle, proferidas com gravidade, mas sem tom de ira, foram estas:

      –D'hora em diante eu continuo a ser seu marido perante o mundo; mas diante da senhora sou um estranho. Emquanto a mãe de minha filha assim quizer viver commigo, essa creança, que eu adoro, será sua tambem; mas, se este viver lhe não quadrar, eu sahirei com minha filha; e farei que ella nunca saiba quem foi sua mãe. Esta sentença não condemna o delicto da sua impuresa; condemna o enorme crime de me ter acceitado como marido. Concorda na minha proposta?

      –Sim… concordo… Eu viverei como tua criada, se assim o quizeres; mas não me tires a minha filha.

      –Retire esse tratamento do tu—voltou o marido com sobrecenho.—Nem uma palavra, nem um gesto que indique a maior ou menor alliança de duas almas que se estimaram, ou tredamente se dissimularam… Esta casa é bastante grande. Podem viver n'ella duas pessoas sem se encontrarem. A senhora é rica: administre o que tem: eu não tenho nada que vêr com os seus bens de fortuna. Ficamos entendidos. Qualquer infracção d'este pacto, estalará em tempestade sem bonança.

      VII

      Aquelle mercieiro, primo do mestre de Maria Isabel, attribulado agora pelas revelações que fizera a Roque da Cunha, avisou padre Luiz da Silveira, encarecendo os martyrios que lhe arrancaram o segredo.

      O thesoureiro de S. Miguel de Alfama ponderou o melindre da situação, e maldisse a embriaguez que o levou á imprudencia de se gabar d'um delicto que elle julgava já esquecido e delido como o bôlo avinhado de que lhe espumara aos beiços a jactancia de ter sido amado da esbelta Maria Isabel Traga-malhas.

      Trazia elle, ao tempo, requerimento bem protegido no paço, pedindo um beneficio na sé de Silves. O aviso do parente esporeou-lhe a diligencia na obtenção da prebenda; para o que, logo na mesma hora, se foi pessoalmente á côrte da Ribeira, e logrou alcançar do secretario de estado a promessa do despacho n'um dos seguintes dias.

      No entretanto cuidou o padre de enfardelar o mais precioso dos seus haveres, sendo o sobre todos estimadissimo fardel, uma rapariga de bons quilates de bellesa, não sabemos se tambem discipula d'elle, se creatura já amestrada em amores, quando o cauto clerigo a installou na freguezia de S. Mamede, no Bêco dos Namorados,—nome gracioso que desdizia da immundicie d'aquella escura alfurja, apenas palmilhada a horas mortas, por um só namorado, que era padre Luiz. Este béco abria por uma das extremidades no Terreirinho do Ximenes, local azado para amantes clandestinos, visto que raro viandante por ali transitava depois das Ave-Marias.

      Para afugentar o terror que o primo lhe incutira, pintando-lhe Roque da Cunha caudilho de uma horda de quadrilheiros facinorosos, padre Luiz fiava-se na convicção de que ninguem lhe suspeitava a lura, nem por aquelles sitios desfrequentados lhe faria espera. Ainda assim, como o seu mêdo era mais de clerigo do que de homem, e o escandalo o assustasse mais do que a lucta, cingiu um correão de pistolas, envolveu-se na capa longa de arruador nocturno, derrubou a aba do sombreiro aragonez, e, á hora do costume, sahiu com o intento de conduzir para casa do primo tendeiro a moça inquilina do Bêco dos Namorados.

      Meia hora antes de elle entrar no Terreirinho do Ximenes, precederam-no n'aquella paragem, desembocando das Pedras Negras2 dois vultos, que pareciam, no moverem-se umas sombras; e sendo dois homens, tão subtilmente deslisavam que difficil fôra estremar qual d'elles projectasse a sombra do outro.

      –Hade passar aqui ou entrar pelo outro lado—disse Roque da Cunha a Domingos Leite—A tua paragem é esta; a minha é a outra. Dou-te o ponto mais arriscado, visto que m'o não cedes. Olha que o padre tem figados, torno a dizer-t'o… Até logo.

      Domingos Leite retrahiu-se para o escuro de um arco sotoposto ao collegio jesuitico de S. Patricio, e acantoou-se no angulo mais comvisinho da passagem. O quarto de hora, que seguiu esta emboscada traiçoeira, arrastou-se vagaroso e dilacerante por sobre a alma ainda immaculada d'aquelle homem, que se via precipitado a um tal feito; que nem a vaidade nem o pundonor justificavam bastantemente a matar um homem desconhecido, que não o ultrajara, que era innocente nas suas angustias de marido e amante vilipendiado. Era atroz. Mas esse homem, ébrio ou infame, proferira com fatuidade o nome de Maria Isabel, conspurcando-lhe a fama, e assoalhando a deshonra do marido ao sêvo dos seus muitos inimigos, invejosos do patrimonio da esposa ou do rendoso officio com que el-rei lhe premiára intelligentes serviços. O orgulho afinal amordaçara o instincto da justiça; ainda assim, a batalha travada na consciencia de Domingos Leite era despedaçadora. A espaços, mettia-lhe horror na fantasia o pensar que rasgaria a punhaladas o peito do homem, cujo nome havia de ouvir dos labios d'elle mesmo; porém, se lhe negrejava no espirito a horrivel irrisão de encontrar-se rosto a rosto com o seductor da donzella, que se deixára poluir como um anjo de alabastro se deixaria inconscientemente despedaçar ás mãos de um ébrio furioso, então o pulso latejava-lhe iracundo no cabo do punhal, e o ouvido escutava com avidez o rumor de passos que lhe figurava a aproximação da victima.

      N'este conflicto, ouviu o estampido d'um tiro, a curta distancia, e um grito agudo de voz de mulher. A detonação e o brado soaram do lado do Bêco dos Namorados. Promptamente reflectiu Domingos Leite que Roque da Cunha se encontrára com o padre; e, por saber que a arma do seu confidente era o punhal, inferiu que o outro desfechára com elle. Isto colligia correndo ao longo do bêco, de faca arrancada, e os olhos cravados no reluctar de dois corpos, sobre os quaes, a revezes, resvalava o frouxo clarão da lampada de um nicho.

      Ao


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Escuso dizer ao leitor que todas estas ruas e bêcos desappareceram no terremoto de 1755. Ha memoria d'ellas em João Baptista de Castro (Mappa de Portugal) e outros topographos de Lisboa.