Carlota Angela. Castelo Branco Camilo

Carlota Angela - Castelo Branco Camilo


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sempre juntos, como até então. Rosalia, se a boa fé nos não engana, chorava com pena da filha, por ver que todo aquelle contentamento se havia de mudar em amargura, se não falhasse o estratagema do doutor.

      Deixal-a chorar, que o seio de Carlota parece alargar-se ao pulsar vehemente do coração. Essa immensa alegria, que lhe deram, leal ou traiçoeira, ha de produzir a bemaventurança ou o inferno d'aquella familia.

      Carlota tem a alma briosa e amante de mais para transigir com a perfidia.

      A obediencia filial, mascara de corrupção com que algumas donzellas se disfarçam para abjurarem sem pejo ligações inconvenientes, é uma «virtude» dos nossos dias, importada… da America. Em 1806 não havia d'isso cá.

      III

      Tu me matas, meu pae! Quem tal pensara?

      Eu beijo a mão que o golpe me prepara.

Marqueza de Alorna.

      A traça do bacharel Joaquim Antonio de Sampayo era afastar Mendonça de Portugal, repentinamente.

      Aconselhara elle a mentira, para evitar o escandalo de um rapto, ou a saida judiciaria de Carlota.

      Ausentar Mendonça para alguma das colonias, ou para os estados barbarescos, sob pretexto de guerra á pirataria, que infestava então o Mediterraneo; e prolongar essa ausencia até dissuadir Carlota, cortando-lhe os meios de se escreverem, era a trapaça do habil jurisconsulto. Norberto, pasmado de tamanho ardil, fez tão estremado conceito do doutor que, no expandir-se da sua admiração, exclamou:

      –Ó cunhado! vossê é homem de todos os diabos! Quem sabe, sabe!

      –Mas, Norberto,—disse o doutor—sabe que sem dinheiro nada se faz?

      –Saque o que quizer, cunhado!

      –Eu tenho talvez de comprar muito caro o pretexto para a saída de Mendonça. Não sei se me verei a braços com os protectores e parentes d'elle na côrte, e as nossas armas são o dinheiro.

      –Pois é dizer o que quer. O doutor leva ordem franca; não poupe dinheiro, e ponha-me o homem fóra da nação.

      Assim armado com o invencivel dinheiro, o tio de Carlota Angela chegou a Lisboa, em fins de 1806, levando cartas de apresentação para o ministro da marinha, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, para D. Catharina Balsemão, e para o intendente geral da policia, Diogo Ignacio de Pina Manique.

      A materia que então mais se discutia era a demencia do principe regente, causada por soffrimentos dos que tornam ridiculo um marido, ainda que o motivo seja mais para compaixão que riso. Fallava-se na morte violenta de José Anastacio, em Mafra, empeçonhado por ter sido o espia e delator da conspiração urdida contra o principe, em Arroios, n'uma casa da condessa de Alorna, que emigrara para Inglaterra, descoberta a conjuração. Os rumores surdos contra os pedreiros-livres indicavam os individuos suspeitos, mórmente depois que o escriptor publico Hippolyto da Costa fugira dos carceres da inquisição, que lhe foram abertos pelo braço poderoso da maçonaria. Hippolyto, auctor, depois, do Correio Braziliense, devia a liberdade á embriaguez dos guardas e á astucia d'elle; convinha, porém, ao governo simular-se assustado do poder da maçonaria para encruar contra os suspeitos a sanha da plebe. É, porém, certo que a maçonaria, em Portugal, entrara em 1797, com os emigrados francezes, e podera a muito custo implantar-se n'uma pequena sociedade ou loja denominada Fortaleza, quasi desconhecida e despercebida até 1806. Só depois que o ministro do reino entregou á inquisição um pedreiro-livre, e o impio fugiu do carcere do Rocio, levando nos canos das botas os «Regimentos da Inquisição» reformados pelo marquez de Pombal, dos quaes publicou, em ar de zombaria, curiosos extractos no jornal que, depois, redigiu em Londres—só depois desses nescios mêdos e estupidas perseguições do governo, sempre providenciaes para acordar os povos do lethargo, é que a sociedade maçonica em Portugal se radicou, floresceu, e deu fructos bons e maus. (Os de hoje apodrecem todos antes de madurar.)

      A questão dos pedreiros-livres revirou os projectos do bacharel portuense. Nova ideia lhe acudiu, quando principiava a mortifical-o o receio de não poder supplantar um frade benedictino bem aparentado, que se dizia ser pae de Francisco Salter de Mendonça. Essa ideia era denunciar o tenente de marinha como encarregado de fundar no Porto uma loja maçonica, para o que tratava de intimidade com Jeronymo José Rodrigues, arcediago de Barroso, o primeiro liberal que teve a cidade eterna, antes de pregoar-se a liberdade em Portugal.

      Francisco Salter de Mendonça conhecia o arcediago, era sua visita, sympathisava com as suas doutrinas politicas, e deixara-se eivar do espirito de vaga novidade que os principios de liberalismo balbuciavam ainda então confusamente. Não era, todavia, pedreiro-livre, porque venerava o frade que o adiantara na carreira das armas, e queria cumprir o juramento que fizera, nas mãos do monge, de jámais se associar á seita dos inimigos de Deus, com quanto conhecesse a inepcia dos pharisaicos amigos do altar.

      O tio de Carlota apresentou-se a D. Catharina de Balsemão, ouviu-lhe dois sonetos, applaudiu-lh'os até chorar de terno enthusiasmo, e disse, depois, o fim a que ia. Pintou com negras côres o roer profundo do cancro da maçonaria no seio da sociedade; lastimou a inevitavel quéda dos fóros e prerogativas da classe nobre, se a média se incorporasse para desarreigar a arvore de seculos; disse que a maçonaria fizera Silla, e Robespierre, e Bonaparte; ajuntou outras muitas tolices em linguagem garrafal, até incendiar a combustivel D. Catharina, que logo alli lhe deu carta de mui especial recommendação para Manique.

      O intendente ouviu com attenção e mêdo o bacharel. Soube que Francisco Salter de Mendonça, mancommunado com o arcediago de Barroso e outros, tratava de fundar uma loja maçonica no Porto, convencendo os timidos «com a sua eloquencia revolucionaria, e promettendo aos illusos a restauração dos direitos dos povos, victimados que fossem os reis e os grandes. Acrescentava o bacharel que Salter de Mendonça traduzia e espalhava os escriptos mais incendiarios dos revolucionarios francezes em 1791, e propalava que Portugal não podia ser feliz sem mandar um rei de companhia a Luiz XVI.

      Manique estava tranzido! O orador, electrisado com o pasmo do ouvinte, entrara na sua hora feliz. As imagens mais ensanguentadas, as metaphoras mais patibulares, os tropos mais coriscantes acudiam-lhe com trovejante iracundia. Digna de melhor destino, a furia oratoria do lettrado do Porto conseguira mais que o desejado. Manique susteve-lhe a torrente, promettendo providencias promptas, e acabou por lhe pedir que ficasse na intendencia exercendo o logar do ajudante, assassinado em Mafra, José Anastacio.

      Aqui é que o bacharel se achou superior a si mesmo, e deu um mental adeus ao safado tostão dos conselhos, que raros clientes lhe levavam, no Porto, ao seu obscuro escriptorio da rua de Santa Catharina.

      Confiado na sua estrella, o nomeado ajudante do intendente geral da policia perguntou ao chefe o que tencionava s. exc.ª fazer a Francisco Salter. Manique respondeu que o faria conduzir preso a Lisboa, e do Limoeiro passaria para a inquisição.

      –Se v. exc.ª me permitte uma reflexão…—disse o bacharel.

      –Diga lá, que eu respeito muito o seu parecer.

      –Com o devido respeito e humildade que se deve aos atilados juizos de v. exc.ª, peço licença para observar que convem obrar com mansidão e parcimonia, para impedir que uma seita perseguida faça proselytos. Eu vou, com o maior respeito, lembrar a v. exc.ª trinta e tantos casos da historia, dos quaes se vê quão imprudente e perigoso é empregar o cauterio á borbulha que muitas vezes resolve sem medicamento, e quasi sempre lavra quando a fazem sangrar. Começarei primeiro pela seita lutherana, a qual seita lutherana…

      –Tem a bondade de não exemplificar…—atalhou o intendente, que detestava cordialmente as novidades tanto em politica como em historia—Que entende o senhor que se deve fazer? Desprezar? Deixar rebentar o volcão? Então de que me servem as tristes novas que me trouxe?!

      –Desprezar, não, exc.mo snr.! Que faz o habil agricultor ao galho sêcco da sua arvore? Corta-o, separa-o das vergonteas vivazes, mas não o lança á estrada, para que o passageiro o leve como cousa sem dono, nem o desfaz com o machado como objecto sem utilidade. Leva-o para casa, lança-o na lareira, e aquece-se a elle. Façamos a applicação: Francisco Salter é o membro contaminado


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