O último comboio para a liberdade. Meg Waite Clayton
A irmã mais nova entregou-lhe um livro e ela sentou-se e pô-la ao seu colo. Abriu-o na primeira página e leu: «Para Sherlock Holmes, ela é sempre a mulher.»
— Não sei se a Johanna está pronta para um Escândalo na Boémia — queixou-se a mãe.
Žofie adorava essa história, sobretudo, a parte em que o rei diz que é uma pena que Irene Adler não esteja ao seu nível e Holmes lhe dá a razão. O rei quer dizer que a menina Adler não é tão inteligente como ele e Sherlock Holmes quer dizer que é mais inteligente. Žofie também gostava do fim, quando Irene os vence a todos e Sherlock Holmes não quer aceitar o anel que o rei lhe oferece, mas quer a fotografia da menina Adler, para se lembrar de que foi vencido pela inteligência de uma mulher.
— É canhoto — disse Žofie. — Refiro-me ao Stephan. Achas que isso é estranho? Perguntei-lhe uma vez, mas não me disse.
A mãe riu-se e foi um som redondo como o zero lindo no meio de uma linha que se prolonga para o infinito em ambas as direções, a positiva e a negativa.
— Não sei, Žofie-Helene — disse à filha. — Achas estranho ser boa a matemática?
Žofie pensou nisso por uns segundos.
— Não exatamente.
— Talvez os outros achem que és diferente — continuou a mãe —, mas tu és assim, sempre foste. Suponho que aconteça o mesmo ao teu amigo.
Žofie deu um beijo no cocuruto de Jojo.
— Cantamos, Jojo? — perguntou. E começou a cantar, acompanhada de Jojo e também da mãe. — A lua nasceu, as estrelas douradas brilham no céu sem nuvens.
THE VIENNA INDEPENDENT
AS LEIS NAZIS CONTRA OS JUDEUS
«NÃO SURGEM DO ÓDIO»
Comissário de Justiça: As leis surgem do amor pelo povo alemão
Por Käthe Perger
WÜRZBURG, Alemanha, 26 de junho de 1937. Durante a reunião nacional-socialista celebrada hoje, o Comissário da Justiça alemão Hans Frank insistiu que as leis de Nuremberga foram criadas “para proteger a nossa raça, não porque odiamos os judeus, mas porque amamos o povo alemão”.
“O mundo critica a nossa atitude para com os judeus e considera-a demasiado dura”, declarou Frank. “Mas o mundo nunca se preocupou com quantos alemães honestos foram expulsos do seu lar pelos judeus no passado.”
As leis, instauradas no dia 15 de setembro de 1935, revogam a nacionalidade alemã aos judeus e proíbem-nos de se casar com pessoas “de sangue alemão”. Um “judeu” define-se como qualquer pessoa que tenha três ou quatro avós judeus. Milhares de alemães convertidos de outras religiões, incluindo padres e freiras católicos, consideram-se judeus.
Com a aprovação das leis de Nuremberga, os judeus alemães não podem aceder ao tratamento nos hospitais municipais, os oficiais judeus foram expulsos do exército e os estudantes universitários foram proibidos de se candidatar para os exames de doutoramento. As restrições suavizaram-se com os preparativos dos Jogos Olímpicos no ano passado, em Garmisch-Partenkirchen no inverno e verão, em Berlim. Contudo, depois, o Reich intensificou os seus esforços de “Arianização”, despedindo trabalhadores judeus e transferindo os negócios dos judeus a preços irrisórios ou sem nenhuma compensação…
A BUSCA
O vaso amarelo estava ali, no alpendre da frente dos Weber. Mesmo assim, Truus aproximou-se do portão lentamente no Mercedes da senhora Kramarsky, certificando-se, como fazia sempre, de que o vaso não estava deitado a modo de aviso e algum nazi serviçal o endireitara. Ao conhecê-los, os Weber tinham-lhe dito que eram velhos, que o seu futuro era curto, mas que, com a sua ajuda, o futuro das crianças poderia ser comprido. Truus abriu o portão, atravessou-o com o carro, fechou-o atrás dela e, depois, levantou a saia para voltar a entrar no carro. Mudou de mudança e percorreu o campo para o caminho que se introduzia no bosque.
Já passava do meio-dia quando viu o primeiro sinal delator de movimento, um brilho que poderia ter sido um veado. Contudo, ao parar o carro, viu que era uma menina que corria em ziguezague entre as árvores. Truus continuava sem entender como as crianças sobreviviam naqueles bosques e páramos durante dias e noites, sem mais nada nos bolsos senão bilhetes de comboio usados, alguns marcos no melhor dos casos e pedaços de pão que as mães lhes davam, tão desesperadas que punham os filhos em comboios até à fronteira da Alemanha sem nenhuma esperança real. As crianças sobreviviam, às vezes, para serem presas depois pelos alemães e enviadas de volta pelos guardas fronteiriços holandeses.
— Não faz mal. Vim para ajudar — disse Truus, com suavidade, tentando ver onde a menina se escondera. Avançou devagar. — Sou a Tante Truus e vim para te ajudar a chegar à Holanda, como a tua mãe te disse.
Truus não sabia porque as crianças confiavam nela, nem se realmente confiavam. Às vezes, pensava que permitiam que se aproximasse delas apenas por cansaço.
— Sou a Tante Truus — repetiu. — Como te chamas?
A menina, de cerca de quinze anos, ficou a olhar para ela.
— Queres que te ajude a chegar até à fronteira? — perguntou Truus.
Um menino um pouco mais novo espreitou entre o mato e, depois, outro. Não pareciam irmãos, mas era impossível saber.
A menina virou-se novamente para Truus.
— Pode levar-nos a todos?
— Sim, é claro.
Quando os outros dois devolveram o olhar da menina sem objetar, ela emitiu um assobio forte. Outro menino saiu do seu esconderijo. E outro. Meu Deus, eram onze crianças no total e uma delas era apenas um bebé ao colo da irmã. O carro iria cheio. Truus não sabia como as mulheres conseguiriam encontrar cama naquela noite para onze crianças, mas deixaria isso para Deus.
Truus atravessou o bosque e regressou à quinta dos Weber com as crianças no carro. Estavam muito caladas, demasiado caladas para uma criança de qualquer idade, sobretudo, quando quase todas eram adolescentes. Caladas e sérias, como as crianças que a família de Truus acolhera durante a guerra.
Então, ela tinha dezoito anos e a guerra batera à sua porta em Duivendrecth, quando, com essa idade, devia ter aberto a porta aos seus pretendentes. A Holanda permanecera neutra, mas, mesmo assim, declarara-se o estado de sítio e mobilizara-se o exército, os rapazes tinham sido enviados para proteger zonas essenciais para a defesa nacional, zonas que não incluíam o alpendre da casa de Truus. Ficava em casa a ler para os pequenos refugiados, que tinham chegado tão fracos e famintos que tivera vontade de lhes oferecer o seu próprio prato e, ao mesmo tempo, desejara comer cada trinca, com medo de ficar tão magra como eles. Tinham-na enfurecido e entristecido em partes iguais, essas crianças cuja reticência entristecia tanto a mãe. Essas crianças que também a transformaram em mãe e a fizeram questionar-se como conseguiria afastar a própria mãe do manto sufocante da tristeza calada daquelas crianças. No entanto, então, na manhã da primeira neve daquele inverno, duro e adiantado, Truus acordou e observou as árvores carregadas de neve, os corrimões nevados por cima das pontes nevadas, os caminhos brancos e impolutos em contraste com as águas escuras e estancadas do canal. Acordou as crianças sem fazer barulho e mostrou-lhes a paisagem. Vestiu-as, agradecida, naquela manhã, pelo sussurro das suas vozes quando falavam. Saíram para a rua e, à luz da lua do inverno que se refletia na neve, fizeram um boneco de neve. Foi só isso. Um simples boneco de neve, três bolas brancas empilhadas uma por cima da outra, com pedras em vez de olhos e ramos a modo de braços, sem boca, como se as crianças quisessem construir o boneco à sua imagem e semelhança. A mãe, com o chá da manhã na mão, espreitou pela janela quando estavam a acabar. Era o que fazia todas as manhãs. Era a sua forma de ver o que o Senhor lhe reservara, como costumava dizer. Naquela manhã, no entanto, surpreendeu-se e alegrou-se ao ver as crianças lá fora, mesmo que não