Crisfal. Cristóvão Falcão de Sousa
os contentamentos
da minha vida passarom,
e em fim não me ficarom
senão descontentamentos
que de mim se contentarom.
Destes, polo meu pecado,
(inda que nunca pequei
a e quem amo e amarei),
nunca desacompanhado
me vejo nem me verei.
XV
Faz-me esta desconfiança
ver meu remédio tardar,
e já agora esperar
não ousa minha esperança,
por me mais não magoar.
Se por isto desmereço,
dê-se-me a culpa assim
e seja só com a fim,
que há muito que me conheço
aborrecido de mim.
XVI
Meu coração, vós abristes
caminho a meus cuidados,
pera virem a ser banhados
na água de meus olhos tristes,
tristes, mal galardoados.
Necessário é que vamos
algum remédio buscar
para se a vida acabar:
est’ é [o] bem que dessejamos,
est’é [o] nosso dessejar.
XVII
Iremos pela estrada
por onde os tristes vão,
porque nela, por rezão
deve ser de nós achada,
achada consolação.
Soir-me-ei ao pensamento,
qu’é alto; de ali verei,
verei eu se poderei
ver algum contentamento
de quantos perdidos hei.
XVIII
Mas o que poderá ver
quem já da vista cegou?
Porque quem me a mim levou
meu alongado prazer
nenhum bem ver me deixou.
Deixou-me em escuridade,
um mal sobre outro sobejo,
pelo que triste me vejo
tam longe de liberdade
como do bem que dessejo.
XIX
Verei a vida, que em vida
bem vista tanto aborrece,
aborrece a quem padece
tristeza mal merecida,
que minha fé mal merece.
Levarom-me toda a glória,
com quanto bem dessejei,
dessejei e alcancei;
ficou-me só a memória,
por dor, de quanto passei.
XX
Lembrança do bem passado,
que não devera passar,
esta me há-de matar;
dá-me tal dor o cuidado,
que se não pode cuidar.
Nada, se não for a morte,
me dará contentamento:
segundo sei do que sento,
não sento prazer tão forte
que conforte meu tormento.
XXI
Não devo eu mal querer
a quem me aqui deixou;
que ouvido nom possa ser,
já me algum bem ficou,
que é meu mal poder dizer.
Mas, triste, não sei que digo;
isto é falar a ersmo:
que assaz me foi enemigo
quem se vingou de mim mesmo
com me só deixar comigo.
XXII
Que me queira consolar,
o meu mal não tem conforto
nem eu lho posso buscar:
para o prazer sou morto
e vivo para o pesar.
Quanto mal tam desvairado
e todos para dar fim!
Tudo me é contrairo, assim:
descuido matu meu gado,
cuidado matou a mim.
XXIII
Vida de tam longos males,
como não cansa de ser!
que eu canso já de viver,
e o eco destes vales
cansa de me responder.
As ribeiras, em eu vê-las,
correm mais do que é seu foro,
entrando meu chorar nelas;
e pois ajudam meu choro,
quero só falar com elas.
XXIV
Companheiras do meu mal,
águas que d’alto correis,
onde caís desigual,
parece que me dizeis:
– Porque não choras, Crisfal?
Contar-vos quero, amigas,
o que esta noute sonhei,
com o qual tal dor me dei,
que minhas muitas fadigas
em mais fadigas dobrei.
XXV
Despois de ontem deixar
de vos contar os meus males,
fui-me cá baixo geitar
no mais baixo destes vales,
antre pesar e pesar;
onde, despois que aos ventos
descobri minhas paixões,
gastadas muitas rezões,
mudei os meus pensamentos
em minhas contemplações.
XXVI
Contente de descontente,
a noute sendo calada,
como é certo em quem sente,
não ficou cousa passada
que me não fosse presente.
Vindo-me à memória dar,
quando andava com o gado,
ter com Maria sonhado,
fez-me