Memórias. Brandão Raul

Memórias - Brandão Raul


Скачать книгу
dilacerada de sceptico e de crente, mixto doloroso que só tinha como solução o infortunio. O que se ouve são risos ou gritos de dor? Depressa! depressa!.. Parece que elle anda ainda por aqui, sardonico e immenso, desgraçado e immenso. Valle de Lobos, se uma vez o avistaram, não emociona de uma forma toda diferente, e não diz bem com a alma de Herculano?.. Quanto a Junqueiro, a sua paizagem querida é indubitavelmente a trasmontana, grave, revolta e grandiosa como o seu genio.

      Camillo não encontrou decerto resignação nas arvores, nem nos montes, porque, para o mestre, em toda a natureza só o homem existia: – Não ha na sua obra uma arvore, nota o poeta… – Nem Guerra Junqueiro por ora se isola. Está na lucta, com os seus livros, as suas theorias, a sua maneira suprema de discutir e de encarar os problemas do universo.

      – Para viver na aldeia é preciso, diz elle, ser João Brandão ou S. Francisco d'Assis.

      De forma que a Barca d'Alva não é bem uma thebaida para o poeta. Os senhores vão agora conhecel-o sob este aspecto novo – agricultor. A Barca é-lhe mais que um refugio: é (palavras que fazem bater o coração de todos os homens) o futuro dos seus filhos. E Junqueiro, agricultor, tem ainda genio: inventa e descobre. Quatrocentos cavadores desbravam-lhe a terra, que deve produzir um vinho magnifico. O mosquito propaga a febre. O jornaleiro macilento bate o queixo com sezões. Elle ordena, dirige e resolve as questões agricolas muito melhor que os lavradores da região, de quem diz:

      – Plantam vinhas, como quem joga na batota – ao acaso!

      Ouçam-no! Desfilam os jornaleiros, que adquirem logo uma vida extraordinaria, as boccas que não falam, a Maria Colhôna, que tem filhos de toda a gente, filhos para o Brazil, filhos para soldados, filhos para a desgraça, os sêres deformados e enormes, os tipos que se transformam em simbolos… Descobriu um novo processo para evitar que a enxertia, essa operação cirurgica, como elle lhe chama, falhe, e, sob as suas ordens, trabalham alguns centos de homens, que se encostam ás enxadas para ouvirem o Senhor Poeta… Não é raro vel-o subito, tempo humido, perigo para as vides, abalar para a quinta com saccos de sulphato. Adivinha, presente melhor a natureza que os sabios – e cria. Tudo o que toca toma sob as suas mãos um aspecto novo, tão certo é que os homem de genio, como quer Carlyle, são sempre superiores e ineditos.

      E de que maneira paradoxal elle expõe as suas theorias! Nervoso, pequeno, calcando o lagedo da Praça, a mordiscar a ponta do charuto, que giganteas formas de sonho não vae creando aquella magica palavra!.. A sua phantasia é eminentemente decorativa.

      – Sabem – dizia o poeta uma noite – sabem que scismo na fórma de transformar toda a agricultura? Acabaram-se os pobres, a fome, os annos tristes! Para o vinho, d'aqui em deante, não bastarão toneis como torres e para o pão arcas como predios. Uma carrada de bois será apenas suficiente para carregar uma abobora, e um simples cacho de uvas dará vinho para duzias de borrachões. Como? Aplicando ás arvores, ás vides, ás plantas emfim, o methodo de Brown-Séquard. O sabio dá a um organismo gasto uma vida assombrosa, injectando-lhe a vitalidade de coelhos. Calculem o resultado d'esse sistema aplicado na agricultura…

      Um castanheiro dura seculos, tem uma vida extraordinaria. É mais que uma arvore – é uma força. Apodera-se dos montes. As suas raizes alastram, os seus ramos tocam no céo. Imagine que injecto polen de castanheiro n'uma vide… Obtenho logo uvas como as da Terra da Promissão. D'um pé de melancia tiro um fructo capaz de carregar um carro. Tres maçãs metem no fundo uma náu.

      E eis, por uma noite de invernia, a natureza transfigurada, pelo poder da phantasia e do sonho. Flores são arvores abrindo lá em cima no céo em parasoes roxos; pinheiros transformam-se em montanhas; monstros erguem as suas corolas de veludo, e na verdade não passam de humildes flores bravias. Uma petala desaba com o fragor de penedos, e multidões sobre multidões sequiosas veem dessedentar-se n'este fructo colossal: – o morango. Ha que tempos que eu erro perdido n'esta floresta monstruosa de papoulas!..

      Junqueiro na intimidade é prodigioso de genio, de imprevisto, de elevação. Vê os factos mais simples com um olhar que os engrandece. Assombra de pitoresco e de inedito. O homem de genio é, como todos os homens, filho da mesma lama, mas, por acaso, vão n'esse humus lagrimas, aguas correntes, detrictos de florestas, restos de nuvens e a emoção profunda da natureza. Por isso sabem tudo, sentem tudo… É pena que as suas conversas, os seus fragmentos, esses pedaços de sonho e de vida, atirados com febre, perdidos, e decerto esquecidos, se não possam juntar, porque dariam um dos aspectos mais extraordinarios do seu genio. Seria esse talvez o seu melhor livro. Assim, por exemplo, as cathedraes de Hespanha, onde Jesus está preso e a ferros, a explicação prodigiosa dos Christos de madeira – o Christo dos soldados, o dos ladrões, o dos cavadores, da sua sala de jantar, unicas obras d'arte de que não quer desfazer-se, e a sua philosophia, a maneira superior como encara o universo e ilumina o desconhecido…

      Pois ahi o teem de novo no Porto, de barba hisurta, embrulhado n'um casaco coçado, com um ar iluminado de Santo. Direis que vae prégar ás multidões. Demais já ha annos que elle escrevia:

Tolstoi o meu sapateiro…

      E um dia, ao saber Camillo sceptico, Camillo com noites de sombrio desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de proposito procural-o para lhe prégar Deus?

      Era n'uma dessas tardes tragicas de Seide, de que o grande escriptor fala nos Serões. A natureza chorava revolvida: a acacia de Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê phantasmas, e sae do horror com blasphemias e sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do crepusculo, com a pala com que escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado n'uma argila côr de mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo… O poeta tenta arrancal-o ao negrume que o envolve: desenrola theorias, explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez… Já o julga abalado e convertido, quando d'essa figura só osso e dor, saem emfim estas palavras ironicas:

      … – Sim, sim, Junqueiro, você convencia-me se eu não tivesse ainda no estomago, desde o almoço, tres bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como tres Voltaires.

Março – 1904.

      Veiu a Lisboa acompanhar, por solidariedade, os lavradores do Douro, o poeta Guerra Junqueiro. É outro homem, que perdeu talvez em exterioridades mas ganhou em funda emoção. Tendo-se-lhe um dia deparado universaes interrogações no caminho; tendo encontrado frente a frente, ao meio da vida, idéas abaladoras, que só o homem de genio pode encarar sem o pavor e o deslumbramento que o grande mistério comunica – as raizes do universo – elle mudou de rumo, tão simplesmente como se praticasse o acto mais banal da existencia. Sendo já um dos maiores poetas da Europa – quiz ser tambem um santo… Durante annos procurou como Fausto o segredo da vida no fundo dos laboratorios. E n'outra phase do seu espirito decorativo tendo entrevisto, pelo poder do genio, novas veredas a tentar, seguiu-as, fazendo experiencias que a sciencia d'hoje plenamente confirma.

      Guerra Junqueiro está na mesma: alguns fios brancos a mais na grande barba de santo, começo de calva amarelada no alto da cabeça, chapéo baixo, uma simplicidade de trajo que vae bem com a simplicidade verdadeira ou ficticia da sua alma. E sobre isto os olhos terriveis que nos fitam e nos adivinham até ao fundo. A conversa é prodigio que evoca, ilumina, toca em todos os problemas da vida, dando-lhes uma grandeza e novos aspectos que entontecem.

      Fala-se a proposito de um livro, e elle diz, não palidamente, nem decerto com as inexactidões com que reproduzo, o seguinte:

      – É um livro interessante. O autor conseguiu deixar falar a parte de inconsciente que cada um de nós traz comsigo… Porque, meu amigo, a porção de infinito que cabe a cada homem é exactamente a mesma. O camiseiro alli defronte e um homem de genio teem na alma identico quinhão. Sómente o camiseiro não consegue encontral-a nem pode exteriorisal-a. Porque? Porque só pensa em camisas. O homem é o universo reduzido… Que cada um pudesse deixar-se narrar – e teriamos a mais maravilhosa historia do mundo!..

      E como incidentemente se refira á sciencia, eil-o que se desvia por outro esplendido caminho:

      – As ultimas descobertas modificaram completamente a sciencia. Foi um terremoto. E eu entrevi isto mesmo: ha annos que chegára ao seguinte resultado:


Скачать книгу