Oliveira Martins: Estudo de Psychologia. M. Lopes Barreto

Oliveira Martins: Estudo de Psychologia - M. Lopes  Barreto


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e rubro, grosso, agitando o latego, n'um delirio, mettia espanto. Os gagos, porém, tem isto de particular: tanto o defeito accrescenta ao horror da furia, como põe nas horas mansas o que quer que é de bonhomia quasi ironica. Era assim D. Pedro. Caçador tenaz, descançava do officio de juiz nas corridas do monte, seguido pelos moços com os nebris e falcões, e pelas matilhas de cães. Então, o seu rosto aplacava-se, e era benigno, bemfajezo, liberal, folgazão. Foi grande criador de fidalgos. Glotão, passava horas esquecidas á meza, onde a vianda era em grande abastança.

      «Assim como a sua justiça era destituida de majestade, assim eram as suas folganças. Dir-se-ia um rustico feito rei; e acaso por isso o povo o amava tanto. Não tinha distincções, nem delicadezas no sentimento, nem no trato, sendo em tudo brutal. Se confundia em si o juiz e o algoz, as suas festas eram kermesses extravagantes e plebéias. Os instinctos aristocraticos e as fórmas da cortezia nobre, torneios, lanças e outros, não tinham n'elle um amigo. Era um democrata, um tyranno á antiga, em cujo espirito toda a brutalidade popular encarnara: por isso mesmo era adorado! Os seus castigos terriveis, passando de bocca em bocca, faziam-lhe um pedestal de força; e as suas continuas folganças populares cimentavam essa força com o amor intimo que nos merece o que tem comnosco a irmandade de gostos. O povo via-se rei na pessoa de D. Pedro.

      «Quando voltava em batéis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta sahia a recebel-o com danças e trebelhos. Desembarcava, e ia á frente da turba, dançando ao som das longas (trombetas), como um rei David. Estas folias apaixonavam-no quasi tanto como o seu cargo de juiz. Por ellas chegava a fazer loucuras. Certas noutes, no paço, a insomnia perseguia-o: levantava-se, chamava os trombeteiros, mandava accender tochas; e eil-o pelas ruas, dançando e atroando com os berros das longas. As gentes, que dormiam, sahiam com espanto ás janellas, a ver o que era. Era o rei. Ainda bem! ainda bem! que prazer vel-o assim tão ledo! Vestiam-se todos á pressa, desciam ainda tontos de somno; e as ruas, uns momentos antes silenciosas e negras, brilhavam com as luzes e tinham o clamor da multidão em vivas, o movimento das danças universaes.»

      Não só as ruas, mas tambem estas paginas. Como para o seu mestre Michelet, a historia é para elle uma resurreição, e como no seu mestre Michelet o poder de evocação é acompanhado n'elle pelo dom da comprehensão. N'este mesmo retrato que analysei, se os pormenores e anecdotas que fazem ver os objectos abundam, não escasseiam os juizos geraes que os fazem perceber. Assim depois de ter pintado o velho rei em corpo e alma, localisa-o na sua epocha e no seu meio, e indica as causas da sua força, que são os motivos da sua influencia. Poder-se-iam definir as suas narrações e descripções, como uma serie de allucinações com integridade da razão.

      «D. Pedro é a viva imagem da Edade-média, politica e domestica. Todos os vicios e todas as virtudes, a fereza e a ingenuidade, os odios terriveis e as amizades espontaneas, sommadas n'um caracter primitivo, onde acaso alguma lepra dos vicios civilisados antigos punha nodoas novas, formavam a pessoa d'esse rei que é verdadeiramente um symbolo: por isso o povo, vendo-se n'elle re-tratado, o adorou.»

      N'este retrato, como em todos os trabalhos do Sr. Oliveira Martins, a cor e a vida abundam; o que não abunda é a proporção e a ordem. E ainda assim não transcrevi senão o que convinha. Se o fizesse na integra, ver-se-ia que o nosso auctor, na furia da inspiração improvisadora, repisa e baralha. Se ordenasse e concentrasse, o effeito seria fulminante e a critica batida recuaria até á admiração.

      Mesmo assim é nos retratos que elle triumpha; vastos como quadros, ou concisos como medalhas vêem-se pendurados a todos os cantos da sua obra. Pinta-os ás dezenas, cunha-os aos centos. Na Historia da Civilização Iberica é Camões, é Colombo, é Loyola; na Historia de Portugal são Affonso Henriques, Pedro o Cru, o Condestavel, o Infante D. Henrique, Albuquerque, D. Francisco de Almeida, D. João de Castro, o Principe perfeito, D. Sebastião, o Restaurador, o Rei magnanimo, o pobre D. João VI; no Portugal Contemporaneo, Saldanha, Palmella, D. Miguel e o Telles Jordão, Mousinho, Rodrigo, Cabral, os Passos e tantos. Com dois traços ou com duzentos, o personnagem apparece sempre vivo, n'um escorço fugitivo ou n'uma longa analyse, com uma verosimilhança que garante a veracidade. E não só esta imaginação é psychologica, mas realista: ella se compraz não só na pintura das opiniões e paixões, mas tambem na representação dos pormenores corporaes e das circunstancias triviaes. Como psychologo, elle sabe que as grandes forças presentes em cada individuo, e que lhe determinam a biographia, se revelam não só no mechanismo das idéias e no jogo das tendencias, mas ainda nas pregas do vestuario e nas rugas do sorriso; como escriptor conhece que só o traço sensivel provoca a visão, e que a arte de pintar com a palavra, é a arte de evocar com a palavra. Assim elle verá a gaguez de D. Pedro, a surdez de Mousinho, a cabeça felina de D. João II; o peito constellado de Saldanha, a face quadrada de Rodrigo, o eterno charuto de Palmella; os habitos, as doenças, as idiosyncrasias mais furtivas apparecem daguerreotypadas por uma imaginação e estampadas n'uma prosa que tem a complexidade e a velocidade das operações vitaes.

      Psychologica e realista, esta imaginação é completa? Um romancista como o Sr. Eça de Queiroz prima na pintura das sensações corporaes e das paixões animaes: o cio, a gula, o egoismo brutal e a intriga trivial, a cobiça e a vaidade, a bondade ingenua e a maldade machinal, quasi que exgottam o seu reportorio; a população dos seus romances é composta de personnagens medios; se uma vez n'um livro que é uma confidencia elle pintou uma alma fóra do commum, foi procedendo á maneira dos lyricos, transcrevendo as suas proprias emoções; Carmen Puebla é o proprio romancista com o vibrar pungente dos seus nervos, e os fremitos da sua furiosa e dolorosa sensibilidade; mas o auctor do Primo Bazilio nunca escreveu um romance como Louis Lambert; para um vôo tal são precisas as azas musculosas do genio cosmopolita e androgyno de Balzac.

      O Sr. Oliveira Martins conhece perfeitamente as raizes inconscientes e physicas da vida superior do espirito, e mostra-as sempre que precisa, bem que sem as minudencias do romance, porque pinta a fresco sobre a parede da historia; mas vê com lucidez egual a florescencia culminante da razão e da moralidade. Elle retrata tão bem o fundador do jesuitismo, como o filho da lavadeira. O genio é-lhe tão familiar como o instincto; e não vejo melhor maneira de cerrar esta analyse da face mais importante do seu espirito, senão transcrever as paginas magnificas que elle escreveu sobre Herculano, e reproduzir, depois da figura do rei que com o punhal nos fundou a nacionalidade, o vulto do escriptor que com o seu genio, incompleto mas poderoso, nos iniciou a historia.

      «… A palavra que o retrata é o Caracter, porque n'elle a vida moral e a intellectual eram uma e unica, – o contrario do sceptico, não raro santo, o proprio do estoico, não raro obtuso.

      «Dizemos pois Caracter no sentido e valor que a palavra teve na Antiguidade, e não na vaga accepção moderna. Não é a intemerata vida, não é o desprezo dos bens mundanos, o odio, a ostentação vã, a desabrida recusa de titulos, de honras, de logares que em si constituem o Caracter; embora a repugnancia pelas cousas mesquinhas seja consequencia indispensavel d'esse modo d'existir que essencialmente consiste na afinação perfeita das regras da moral e dos principios da intelligencia, da vida do cidadão e da existencia do philosopho. O typo do caracter á antiga é o estoico, e este é o nome que propriamente define a physionomia de Herculano; este é o typo que passo a passo veiu crescendo até dominar nos ultimos annos, – quando as licções successivas do mundo, nunca estoico e muito menos do que nunca em nossos dias, e muito menos do que em parte alguma em Portugal; quando os desenganos do mundo o degradaram para o exilio, – não como um martyr, mas como um homem, que protestando sempre, se não converte, nem se corrompe.

      «Por isso o estoico é por natureza austero e duro; e na pessoa de Herculano esse genero aggravava-se com effeito por varios motivos: já pelo seu temperamento lusitano, já pela deploravel baixeza do nivel moral da sociedade portugueza, já pelo saber consideravel systematisado pelo philosopho, e sem duvida alguma desproporcionado para a illustração media do paiz em que vivia. Olhando as miserias alheias e a alheia ignorancia, por modesto que fosse – e não o era – via-se muito acima como homem e como sabedor. Isto, e não a cohorte dos aduladores ineptos a quem não dava importancia, embora a sua bondade os não fustigasse, o fazia inconscientemente orgulhoso: porque nenhum orgulho nem pedantismo tinha para com todos os que via crédores de attenção e respeito.

      «Do accordo da


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