Tribunaes de Arbitros-Avindores. Bastos Teixeira
os
Tribunaes de Arbitros-Avindores
I
Entre as instituições que surgiram nos tempos modernos para satisfazer necessidades creadas pelo grande desenvolvimento industrial, uma das mais importantes é, sem dúvida, a dos tribunaes de árbitros-avindores.
Corresponde esta instituição, propriamente da industria, á dos tribunaes do commercio, que teem jurisdicção privativa sobre as causas que nasceram de actos ou de obrigações commerciaes.
A acção dos tribunaes de árbitros-avindores extende-se a todas as controversias que se podem dar entre patrões e operarios ou empregados, ou só entre operarios, sobre assumptos concernentes ás industrias. As funcções d'esses tribunaes são judiciarias, mas antes d'isso e principalmente são conciliadoras, como convém em especial a divergencias levantadas, quer entre patrões de uma parte, e operarios ou empregados de outra, quer apenas entre companheiros de trabalho.
É sem duvida uma instituição nova, trazida pelas necessidades do regimen industrial, que foi uma consequencia do moderno desenvolvimento scientifico e da applicação das sciencias á producção de artefactos; mas descobrem-se os seus germens em instituições que desappareceram deante do camartello demolidor dos revolucionarios de 1789 em França, os quaes serviram de modêlo aos nossos de 1820. A missão conciliadora dos árbitros-avindores é no fôro industrial o que é no fôro civil a dos juizes de paz, e uma e outra teem raizes na antiga organização judiciaria de Portugal, como notou o sr. Baptista de Sousa, no excellente relatorio da commissão que foi officialmente encarregada de formular os regulamentos para os tribunaes de árbitros-avindores, e já anteriormente descobrira o notavel jurisconsulto Abel Maria Jordão. Nas côrtes de Elvas, em 1481, foram reclamados juizes-avindores, e D. Manuel satisfez o pedido dos povos em 1519, creando tres juizes e dando-lhes um regimento. O julgamento por homens bons, que data da Edade-Média, pode ser considerado ao mesmo tempo como antecedente do julgamento pelo jury nos tribunaes ordinarios e commerciaes e do julgamento pelos árbitros ou peritos no fôro industrial.
Em França tambem a instituição encontra raizes historicas.
Diz Savigné n'um interessante Estudo sobre os Conselhos de Peritos: "Quem quizesse, raciocinando por deducções ou por analogias, dar-se a averiguações historicas, facilmente levaria a uma épocha muito remota a origem da jurisdicção dos Peritos.
"Uma deliberação, tomada em 1285, pelo Conselho da cidade de Paris, em tempo de Philippe o Bello, poderia servir para ponto de partida. Diz "que serão eleitos vinte e quatro Peritos, aos quaes correrá obrigação de virem á audiencia dos burguezes, á ordem do preboste e dos vereadores, e aconselharão os homens bons, e irão com o preboste e os vereadores a casa dos mestres, ou ao rei ou a outra qualquer parte, dentro ou fora de Paris, em prol da cidade." Lembra tambem a instituição dos Peritos pescadores de Marselha, que data de 1452, e o edicto de Luiz XI, de 1464, que outorgou "poder aos conselheiros, burguezes, villões, e habitantes da cidade de Lyão, de commetterem a um Perito de bom conselho e idoneo a decisão das contestações que pode haver entre os mercadores que acudissem ás feiras de Lyão."
Mas a instituição dos tribunaes de árbitros, como fôro privativo das questões industriaes, é relativamente moderna e nasceu em França.
II
Sem remontar aos tempos anteriores á revolução, onde, como vimos, em várias instituições se podem descobrir germens da moderna instituição de árbitros-avindores ou juizes árbitros, a origem dos Conseils de Prud'hommes encontra-se em França na lei de 18 de março de 1806. Reclamada pela Camara do Commercio de Lyão para pôr termo aos abusos que se davam nas fabricas e conciliar os interesses de todos, foi decretada pelo Corpo Legislativo com applicação especial áquella cidade, mas podendo extender-se por um regimento de administração publica, deliberado em Conselho de Estado, a outras cidades fabris conforme o Governo julgasse conveniente. Aquella lei ordenava o estabelecimento de um Conselho de Árbitros em Lyão, formado por nove membros, sendo cinco negociantes fabricantes e quatro donos de officinas, e destinado a julgar sem appellação questões de pagamento de quantias até 60 francos. As cidades industriaes de França apressaram-se a reclamar a nova instituição, e o governo deferiu sem demora as successivas petições de Clermont, Ruão, Nimes, Avinhão, Mulhouse, Troyes, Sedan, Thiers, Carcassona, S. Quintino. Em quatro annos crearam-se em França vinte Conselhos de Árbitros. Reconheceu-se logo a necessidade de dar bases geraes á nova instituição, e por isso, com o fim de completar e generalisar a legislação dos Árbitros, foram promulgados os decretos de 11 de junho de 1809, 20 de fevereiro e 3 de agosto de 1810, que sem nenhuma modificação estiveram em vigor até 18481.
Diz Savigné: "Segundo o decreto de 1810, os Conselhos de Peritos compunham-se de negociantes fabricantes, donos de officinas, contra-mestres , tintureiros ou obreiros contribuintes. O numero podia ser mais ou menos consideravel, mas os negociantes-fabricantes deviam perfazer metade e mais um.
"Além d'isso, era estabelecida uma mesa particular e uma mesa geral. A particular devia ser composta de dois membros, que tinham por missão a conciliação das partes. A geral não podia deliberar senão quando comparecessem, pelo menos, dois terços dos membros do Conselho; devia tomar conhecimento das questões não conciliadas, e resolver sem demora por julgamento."
Continuaram a crear-se por toda a França essas modestas jurisdicções que satisfaziam de um modo feliz as mais instantes necessidades das fabricas e das manufacturas. Os Conselhos de Árbitros estatuiam sobre as desavenças que desuniam as partes, moderavam as queixas, socegavam os impacientes e os descontentes, discutiam por vezes a questão das tarifas e conseguiam com frequencia restabelecer o equilibrio entre patrões e operarios. A organisação, todavia, estava ainda longe de corresponder inteiramente aos fins a que visava, em razão da excessiva preponderancia dos mestres e industriaes, sendo quasi total a exclusão dos operarios, por falta de carta de officio.
Paris, apesar da sua importancia industrial, só em 1844 conseguiu ter um Conselho de Árbitros. Todas as tentativas anteriores para a sua fundação tinham abortado, quer por considerações politicas, quer pela difficuldade de pôr a instituição em harmonia com os variados ramos da industria parisiense. A jurisdicção do Conselho de Árbitros, creado em Paris por decreto de 29 de dezembro de 1844, em consequencia de reiteradas solicitações, limitava-se, porém, á industria dos metaes e ás correlativas. Os resultados, que foram desde logo excellentes, levaram o Governo a estudar a jurisdicção do primeiro Conselho a toda a alçada do Tribunal do Commercio do departamento do Sena e a crear mais tres, por decreto de 9 de junho de 1847, sendo um para os tecidos, outro para os productos chimicos e o ultimo para todas as outras industrias.
A Revolução de 1848, de tendencias socialistas, introduziu profundas modificações na organização dos Conselhos de Árbitros, em especial quanto á composição. Diz Savigné: "Segundo a antiga legislação, só os mestres tinham, por assim dizer, entrada n'esses Conselhos, porque os candidatos deviam ser contribuintes. Dizia-se que os officiaes nem sequer tinham o direito de eleger os industriaes que os julgavam. Ora, devendo os Peritos offerecer a todos o mais cabal abôno de independencia e de imparcialidade, esse estado de cousas, que não quadrava com os principios de fraternidade e de egualdade do governo de então, não devia continuar a subsistir. Tratou-se, pois, de dar representantes aos operarios não contribuintes, que tinham sido sempre excluidos dos Conselhos"2.
A nova lei, da iniciativa do ministro do Commercio e Agricultura, Flocon, que apresentou o projecto em 18 de maio de 1848, foi relatada em 25 por Leblond, discutida em 26 e approvada em 27 pela Assembléa Nacional. Estabelecia como principio que seria sempre egual o numero dos Peritos-officiaes ao dos Peritos-mestres e declarava eleitores todos os mestres, donos de officinas, contra-mestres, officiaes e apprendizes com 21 annos completos de edade, e seis mezes, pelo menos, de residencia no districto; e elegiveis os mesmos desde que tivessem 25 annos de edade, soubessem ler e escrever e residissem, pelo menos, ha um anno na circumscripção. A presidencia durava tres mezes e pertencia alternadamente, por eleição, a um mestre e a um operario titular.
A eleição era dupla; primeiro, o collegio dos mestres escolhia de seu seio um numero de candidatos triplo do dos membros que houvessem de ser nomeados, e do mesmo modo procedia o collegio dos officiaes; depois, organisadas assim
1
Savigné, ob. cit. p. 8 a 10.
2
Ob. cit versão portugueza, p. 19.