Mundanismos. Diniz Almachio
de Kadjira que destruia as rozas por prazer. No reinado das fantasias de ouro e de fidalguia com que se entontecem os teus paes em sonhos egoistas, cheguei, como a perversa princeza turca que despetalava rozas, derrocando castellos, para me conter na illusão em que me deleitava sómente com a audiencia da negativa inclemente de tua mãe. Confessou-me que maldava de todo o nosso amor, desde principio. E porque, se assim era, protegia a ampliação de um sentimento que deveria ser, como os filhos defeituosos das ciganas que são atirados ás piranhas, destruido no nascedoiro? Antes que eu lhe communicasse, falou-me em que se correspondias aos meus calculos de matrimonio, era porque, doidivana como toda creança, jogavas a péla na orla do precipicio, esperando o aviso amigo para te retirares gloriosamente… Negarás, Heloisa, que tinhas consciencia de minha pretenção? Sophismarás, em favor da excommunhão que me lançou a tua mãe, e contra a clareza da ordem que me deste afim de se officialisarem as relações do affecto, que nos encaminhava de um illusorio paraiso? Responde com o talento immensuravel com que sempre me amaste…
– Falas desatinadamente, Christovam, numa contingencia em que deverias possuir o maior tino dos homens.
– Tens o dom solar de illuminar o mundo pelos flancos, se uma nuvem pesada se antepõe á sua esphera…
– Sinto-me transfigurada. Amo-te ainda, e não te hei de amar fóra do regosijo delles…
– Dos teus paes?
– Sim. Acharias extranho se te dissessem que duas sementes postas em tuas mãos estariam vegetaes só ao sôpro de um fakir indiano. Porque admittirias que a minha vontade fosse forte bastante para romper a marcha das intenções dos meus paes sobre a minha razão de ser mulher? Por ventura sem o sopro do fakir as sementes germinariam e attingiriam as fórmas de seres definitivos? Não supporás que, sem aquelle sôpro, algo se realisasse. Como suppôres que sem a vontade dos meus maiores a nossa união se perpetraria ao teu sabôr?
– Desconheço-te já…
– Mas, porque…
– O sophisma substitue a tua logica: o amor cedeu o posto á quesilia dos outros…
– Esperarias o meu consorcio sem o consenso dos que me deram a existencia de mulher?
– Nem sei de mim mesmo que te responda…
– Não poderias esperar. Se eu fôsse livre, se a lagarta para ser papilio não carecesse de passar por ser chrysalida, nem eu te mandaria impetrar a sancção que nos faltou, nem os que nol-a negaram teriam razões para tal fazer. Aborrece-te o trovão? amedronta-te o curisco? Queres ver-te livre delles? Crê num Deus e pede-lhe a extinção… Infelizmente, Christovam, nem o trovão se extinguiria, nem o teu querer triumpharia… De um lado, Deus seria impotente para te dar o que pedisses porque não terias o direito de pedir… Só pede quem póde pedir; se se pede é porque de quem dá depende o pedido; e se o pedido não é dado, procura a causa na insufficiencia e na sem-razão de quem pediu…
– Mas…
– Nada adianta, Christovam. Corresponde ao meu inquerito e nega-me, se conservares a razão, que tenho o bom senso desejavel ás creaturas perfeitas. Queres responder-me?
– Nada significará o que te responda.
– É preciso que sejas categorico.
– Pois sim: responder-te-ei.
– Poderias tomar-me como tua esposa sem, obteres a minha vontade?
– Por certo que não.
– De minha parte a questão é outra: teria eu o direito de responder por mim num caso expresso de matrimonio? poderia ser unico o meu querer?
– Se quizesses, sim.
– Não é assim, não. Porque não me tomarias por mulher sem o meu assentimento? Por impoderoso deante de minha definição adversa. Porque não me daria eu por esposa sem o consentimento dos meus paes? Por impoderosa deante da pronuncia delles. Se tu pudesses alcançar de mim o amor sem vontade, desnecessario seria impetrares-m'a; se eu dispuzesse de meu corpo sem a intervenção dos que m'o formaram do nada em materia e em alma, nem cogitaria de enviar-te a elles…
– É um dilemma sophistico.
– Por que principio, não sei.
– Um dia, quando eu te disse que me abrazava na sêde do teu amor, Heloisa, como correspondeste a esse lapso do meu instincto?
– Do modo mais franco.
– Sim… Dando-me apaixonadamente os teus labios para nelles, como eu quizesse, matar a sêde que allegava…
– Dependia de mim. Dei-te.
– De outra vez pedi-te um testimunho da correspondencia de tua paixão. Negaste-m'o?
– Não poderia negar.
– Exactamente. Levaste-me, com todo o carinho, a dextra ao collo, e, na grandeza das iteradas pulsações cordiaes, affirmaste que eu reconheceria a intensidade do teu sentimento…
– Dependia de mim. Pratiquei.
– Por fim, quando te acenei com o plano de nossa união…
– Como te respondi, Christovam?
– Com a primeira negaça.
– Adulteras a minha intenção: cumpri o meu dever, enviando-te á maman, como o caminho propicio para vencer o papá.
– Realmente, Heloisa. Sou um vencido.
– Garanto-te, porem, Christovam, que te amo, ainda, como te amei…
– Irresistivel tormento para mim: serei eternamente o artista obrigado a consummar uma grande obra musical sem a inspiração para a realidade do dever…
– Desistes, então, do teu amor?
– Razões me sobejam…
– Que te disse, afinal, a maman?
– Isso mesmo. Falou-me em que queria um marido para a sua filha e lembrou-me que um musicista não compõe sem ter inspiração…
– Nada de mais, Christovam!
– Talvez não queiras comprehendel-a… Mas é tudo que se póde allegar contra um homem…
E, louco pela musica, inconsciente quasi, CHRISTOVAM DETMER assentou-se ao piano e executou, irreproduzivelmente, a esquisita criação de Gotschalk, ao depois do que, ceremoniosamente, se despediu de HELOISA…
O VELHO MEDICO
O mostruario exhibia, garbosamente, os artigos da moda rigorosa.
ESTEPHANIO e JUDITH – esta desprendendo-se de si no devotamento ao esposo, e aquelle, dominador da mulher vencida em mais annos, como se lhe tivesse o corpo de cór, curvas e linhas, luzes e perfumes – gozavam o esplendor dos luxos, com que o artificio corrige os defeitos da Natureza e apaga os estragos do Tempo…
MARCO ANTONIO – o medico afamado – cofiando as ennevoadas barbas em que se escondiam as illusões do seu poder curador, arrancou os olhares dos dois esposos, e apoderou-se, com fascinante dominio, de suas attenções…
– Bem póde a therapeutica dos homens… Vejo-o restituido ao fulgôr da mocidade…
– É exacto, doutor, passo agora sobre as molestias como a insensivel salamandra por sobre chammas… Descrendo da causa, não posso affectar-me com os seus effeitos: a sua medicina é a criadora das humanas torturas. Parece-me que jà se disse: «Tirem os medicos e as enfermidades desapparecerão»… Mas, eu digo: fugi delles e estou curado. Deem-me milhões de medicos e estarão formados trilhões de doenças.
– E quem te curou, meu caro?
– A natureza…
– O novo deus pagão…
– Assim diz o dr., mas, de facto, a inexgottavel fonte de poderes curadores. Lembra-se de que o procurei exasperado com o que soffria?
– Lembro-me,