Mestres da Poesia - Augusto dos Anjos. August Nemo

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triunfais por trombetas de prata; incapaz de tergiversar manhosamente no cumprimento de um dever individual, cívico ou doméstico; inacessível, impermeável às sugestões da lisonja, quer ativa, quer passiva; nunca se dando ao desporto detestável de atassalhar a reputação literária ou particular dos seus confrades que entre nós, infelizmente, é tão comum nas periódicas campanhas literárias; jamais descendo, na palestra, a esses abandonos durante os quais as palavras, em trajes menores, correm rápidas como dardos e esfuziam como coriscos; bom e leal companheiro na amizade, simples, modesto, recatado, era um tipo de admiráveis virtudes individuais. Era materialista pela cultura; idealista por temperamento.

      Ora, cada vez mais nós nos devemos convencer de que a Arte é "a natureza vista através de um temperamento".

      Opinião esta já bem antiga, porque Virgílio, nas "Geórgicas", no princípio daquele tão encantador livro IV, em que nos pinta a vida das abelhas como nunca o fará Maeterlinck, já reconhecia que o assunto do poema pode ser humilde; o que importa â glória do poeta é que ele tenha a inspiração apolínea:

      In tenul labor; at tenuls non gloria, siquem

      Numína lava slnunt auditque vocatus Apollo...

      E assim que ele, o monista violento e por vezes brutal, sem sombra de necessidade, diz nos "Gemidos de Arte”:

      Mas a carne é que é humana! A alma é divina.

      Dorme num leito de feridas, goza

      O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,

      Beija a peçonha, e não se contamina!

      Nota-se-lhe, então, algumas estrofes adiante, o desprezo peIas realidades chatas, embora inevitáveis, da existência:

      Barulho de mandíbulas e abdomens!

      E vem-me com um despreza por tudo isto

      Uma vontade absurda de ser Cristo

      Para sacrificar-me pelos homens!

      As suas perambulações intermundiais deixavam-no insatisfeito. Era insaciável o seu desejo de ascensão. A sua vibrátil sensibilidade cada vez mais o distanciava do mundo que ele habitava. Queria subir, subir sempre, de mundo em mundo, num incessante "quaere superius", como Santo Agostinho, contemplando as estrelas numa praia aromal do Mediterrâneo:

      Vestido de hidrogênio incandescente,

      Vaguei um século, improficuamente,

      Pelas monotonias siderais...

      Subi talvez às máximas alturas,

      Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,

      É necessário que inda eu suba mais!

      Era um famélico da luz insuperável, das vastas amplidões iluminadas, de onde não se enxerga a chatice material da vida ordinária. Não queria ver as maravilhas e as rebarbas da existência. Trazia dentro de si um sonho interior tão grande, que só queria descortinar os amplos horizontes que aos miopes da ordem sentimental aparecem longínquos e vagamente esfumados. É que ele confessa nas "Queixas noturnas":

      Como um ladrão sentado numa ponte

      Espera alguém, armado de arcabuz,

      Na ânsia incoercível de roubar a luz,

      Estou à espera de que o Sol desponte!

      (...)

      As minhas roupas, quero até rompê-las!

      Quero, arrancado das prisões carnais,

      Viver na luz dos astros imortais,

      Abraçado com todas as estrelas!

      Observei desde princípio que este poeta era inacessível a inspiração erótica. Era isto, parece-me, efeito do, seu pessimismo substancial, o mesmo pessimismo leopardiano, de quem, como o poeta de Recanati, nasceu trazendo dentro em si, não a força da Vida, mas os germes deletérios da Morte; o mesmo pessimismo que o fazia detestar a Vida, como é fácil verificar compulsando o seu livro, fazia-o também ter pelo "amor' o mais profundo desprezo. Era natural. É pelo amor que se perpetua a Vida; logo. deve detestar o primeiro, que é um "meio", quem detesta a segunda, que é um "fim". Era perfeitamente lógico.

      Por duas ou três vezes que ele toca no assunto é para proclamar o seu supremo desprezo não tanto pelo sentimento, como pela sensação, penso eu:

      Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!

      O amor da Humanidade é uma mentira.

      É. E é por isso que na minha lira

      De amores fúteis poucas vezes falo.

      O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!

      Quando, se o amor que a Humanidade inspira

      É o amor do sibarita e da hetaíra,

      De Messalina e de Sardanapalo?!

      Quis saber que era o amor, por experiência,

      E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,

      Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,

      Todas as ciências menos esta ciência!

      Materialismo brutal, dirão. Enganam-se. Ainda aqui, mais uma vez, tocam a rebate todas as campanas do seu acrisolado idealismo. O que ele detestava acima de tudo era o que ele chamava os "amores fúteis". Queria o amor impossível, o sentimento puro, espiritual, fluido, etéreo, imarcescível, que para ele era:

      É a transubstanciação de instintos rudes,

      Imponderabilíssima e impalpável,

      Que anda acima da carne miserável

      Como anda a garça acima dos açudes!

      Eis por que lhe chamo "poeta da morte", porque não amava a Vida nem o Amor. Estava no seu direito, ou melhor, na sua fatalidade.

      Quero, entretanto, antes de concluir este artigo, oferecer a gente ledora dois sonetos do poeta pouco conhecidos. O primeiro, em que ele idealiza e espiritualiza tão encantadoramente as forças universais, é o seguinte, por ele intitulado "La mento das cousas":

      Triste, a escutar, pancada por pancada,

      A sucessividade dos segundos,

      Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos

      O choro da Energia abandonada!

      E a dor da Força desaproveitada,

      — O cantochão dos dínamos profundos,

      Que, podendo mover milhões de mundos,

      Jazem ainda na estática do Nada!

      É o soluço da forma ainda imprecisa...

      Da transcendência que se não realiza.

      Da luz que não chegou a ser lampejo...

      E é, em suma, o subconsciente aí formidando

      Da Natureza que parou, chorando,

      No rudimentarismo do Desejo!

      O segundo soneto que citarei será o derradeiro, chama-se “Último Número”; Fê-lo o poeta pouco antes da sua morte. É um soneto cabalístico, não há negá-lo. É sibilino. Que será o “último número”. Será a última vibração do seu ser em prol da Beleza? Será o último transporte das suas faculdades em direção à sua companheira – a Poesia? Será a sua derradeira aspiração a objetivar na angústia de uma estrofe todo o infinito que ele trazia dentro de si? Pode não ser nada disso e pode ser tudo isso ao mesmo tempo...

      Enquanto ao soneto, ei-lo aqui:

      Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,

      A Ideia estertorava-se... No fundo

      Do meu entendimento moribundo

      Jazia o Último Número cansado.

      Era de vê-lo, imóvel, resignado,

      Tragicamente de si mesmo oriundo,

      Fora


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