Terra em Fogo. Barbara Cartland
uma excitação e ao mesmo tempo um divertimento que Quito nunca tinha experimentado antes.
Várias pessoas subiram nos telhados e nas torres das igrejas, para observar a batalha que se travava nos morros meio ocultos pelas nuvens. Uma senhora disse a Lucilla:
—Não sabíamos qual seria nosso destino, até vermos os realistas descendo a encosta correndo, com seus uniformes azuis e dourados. Soubemos então que Sucre tinha vencido e que estávamos salvos!
Disse isso com lágrimas nos olhos, e Lucilla compreendeu o que a vitória significara para o povo oprimido e dominado durante séculos.
«Eles amam seu país», pensou.
Ficou também sabendo que a população de Quito detestava os espanhóis, com um ódio talvez mais intenso e mais violento do que em qualquer outro país da América do Sul.
Sir John adaptou-se rapidamente à nova situação. Alugou, nos arredores da cidade, uma casa què tinha sido abandonada apressadamente pelo Vice-Presidente espanhol, que escapou justo a tempo de não ser feito prisioneiro, ou então morto na hora, como aconteceu conj muitos de seus compatriotas.
Havia muitas dívidas a serem saldadas, velhos' insultos a serem vingados. O Marechal-de-campo Sucre não pôde evitar certos atos de vingança e até mesmo de tortura.
Isso não era de admirar. Muita gente se lembrava do que acontecera depois da revolta de 1809, quando a revolução fracassou. As ruas ficaram manchadas do sangue dos patriotas massacrados. Os conspiradores presos foram enforcados, ao passo que os de posto mais alto foram despedaçados, com as pernas e os braços amarrados em quatro cavalos levados para rumos diferentes. Outros foram tirados da forca, ainda com vida, e decapitados, sendo as cabeças colocadas em gaiolas de arame e exibidas na cidade. Depois, os corações foram arrancados dos corpos e atirados num caldeirão com água fervente, no centro da praça.
Por ordem do presidente, essas atrocidades tinham que ser testemunhadas pelasr famílias dos Condenados.
Lucilla pôde compreender que, depois de tantos anos de desejo de vingança, houvesse júbilo pela libertação de Quito. Apesar disso, de noite ela às vezes estremecia, ao ouvir um grito, como se o esconderijo de algum Espanhol tivesse sido descoberto, ou uma exclamação de alegria por parte dos que assim se vingavam.
Afinal, os que morriam eram gente, tanto quanto ela; pessoas que queriam viver sem guerra, sem crueldade, sem miséria.
Mais emocionada ainda ficava quando, ao andar pela casa, via as gavetas das cômodas cheias de roupas dos que haviam fugido, jóias puma penteadeira, papéis e documentos em desordem numa escrivaninha.
Não podia deixar de pensar que ela, o pai e a irmã eram intrusos espiando a vida íntima de alguém, metendo-se no que não lhes dizia respeito.
Sir John deu ordem para que destruíssem tudo o que havia pertencido aos espanhóis que tinham abandonado a casa, mas Lucilla não obedeceu. Arrumou os armários que não estavam sendo usados e trancou as jóias e objetos pessoais nas gavetas de baixo, onde ninguém mexeria.
Todos os dias, achava que eles não poderiam ter encontrado uma casa mais bonita. Ficava encantada com o pátio enorme, com uma fonte no meio; admirava os vasos de pedra cheios de buganvílias, gerânios, lírios e rosas.
Nas galerias e nos quartos havia quadros, quadros que a fascinaram, assim que teve tempo de examiná-los.
Nos primeiros dias, isso foi impossível, porque teve que contratar empregados, supervisionar a cozinha e estar sempre à disposição de Catherine.
—Passe meus vestidos! Conserte essas rendas! Onde está meu chapéu enfeitado de plumas? E as sandálias que combinam com o vestido verde? Minha sombrinha?
Catherine poderia ter sido um General, com seu jeito de dar ordens, mas sempre tinha sido essa sua atitude com a irmã mais nova.
Felizmente, Lucilla estava habituada a resolver as dificuldades domésticas, tendo sido quase obrigada a assumir essa responsabilidade, após a morte da mãe.
Achou fácil contratar os empregados que o pai queria. Como os ordenados eram muito mais baixos do que os de Londres, logo arranjou criados competentes para cuidarem da casa e também de Catherine.
Uma moça que tinha sido treinada no convento sabia costurar, outra era especialista em passar e em engomar, uma terceira poderia aprender a pentear Catherine de acordo com a última moda.
Finalmente, quando pôde dispor de um pouco de tempo para si mesma,. Lucilla foi examinar os quadros, percebendo que não apenas eram bonitos, como incomuns.
Ainda não sabia que as pinturas, assim como os entalhes dos púlpitos e dos altares, nas igrejas de Quito, tinham sido feitos por nativos, sob a orientação dos padres. Alguns se tomariam mestres, na verdadeira acepção da palavra, e suas pinturas ficariam mundialmente famosas.
Mas, atualmente, só o que Lucilla sabia era que encantavam seus olhos, causando-lhe um grande prazer espiritual.
No princípio, sentiu falta de ar e tonturas, porque, com exceção de La Paz, Quito era a cidade mais alta da América.
Mas logo se aclimatou. Às vezes sentia que a beleza das montanhas ensolaradas, sob o céu que tinha a cor de lápis-lazúli, a fazia flutuar por entre as nuvens que ocultavam inúmeros outros picos.
A contragosto, Lucilla deixou de olhar para uma maddona de expressão doce. com uma grinalda de flores de vários tipos e de váriás cores, e foi para um quarto perto do hall de entrada.
Vendo a escrivaninha e várias poltronas de couro em estilo masculino, achou que ali devia ter sido o escritório do vice-presidente.
Na parede de frente para a janela, havia numerosos retratos, todos de oficiais usando o uniforme real, branco com enfehes dourados, de calças muito justas. Medalhas, espadas e botas reluzentes faziam com que parecessem imponentes, mas, ao mesmo tempo, quase inumanos, como bonecos.
Lucilla examinou os retratos, achando que o do centro era o presidente de Quito, o General Aymarich; o que estava à sua direita devia ser o vice-presidente e Dono daquela casa.
O homem à esquerda do presidente chamou a atenção de Lucilla de um modo estranho, a ponto de não olhar mais para os outros. Parecia mais alto, de ombros mais largos. Tinha cabelos escuros, olhos frios e duros, um nariz aquilino característico da nobreza espanhola, boca firme, mas não cruel. Havia nele, embora Lucilla não pudesse explicar por que, uma espécie de reserva, uma atitude orgulhosa.
Não soube dizer por que ele a atraía tanto, pois, desde que chegara a Quito, dizia a si mesma que, se as histórias a respeito dos espanhóis eram verdadeiras, então mereciam o que tinham sofrido.
Mas esse homem era diferente... seria mesmo?
Talvez fosse mais culpado do que os outros, porque, não apenas parecia bem-educado, como extremamente inteligente.
Ele devia ter sabido, devia ter compreendido que a maneira como tratavam os índios era errada, que a fortuna que os espanhóis tiravam do país devia servir aos que ali viviam e que sua fidelidade à Espanha devia ser temperada com um pouco de amor pela América do Sul.
«Estou sendo ridícula! Por que iria ele sentir isto?».
Mas seus olhos de novo se fixaram no retrato. Havia nele qualquer coisa que a atraía, embora não soubesse a razão.
Depois, sob o retrato, viu o nome dele:
« DON CARLOS DE OLAÑETA »
Certamente era espanhol, um nobre, um soldado, um homem que talvez tivesse sido tão cruel como todos os outros, cruel a ponto de chegar à bestialidade, conforme algumas pessoas lhe contaram em Quito.
—Não acredito! — disse em voz alta.
Depois, não compreendendo os próprios sentimentos, - saiu da sala, fechando silenciosamente a porta.
Sabia que voltaria ali. Enquanto caminhava