Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
E apesar de não ter motivo para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras: "Meu adorado Amaro..." Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silêncio, para sempre!... Separarem-se por quê? - pensou. Depois de casada podia bem ver o Sr, padre Amaro. E a mesma idéia voltava, sutilmente, mas numa forma tão honesta agora, que a não repelia: decerto, o Sr. padre Amaro podia ser o seu confessor; era em toda a cristandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciência; haveria então entre eles uma troca deliciosa e constante de confidências, de doces admoestações; todos os sábados iria receber ao confessionário, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e aquilo seria casto, muito picante, e para a glória de Deus.
Sentiu-se quase satisfeita com a impressão, que não definia bem, duma existência em que a carne estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria os encantos duma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por fim... E daí a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do senhor pároco.
Ao outro dia a Ruça levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as duas senhoras, costurando à janela, falaram do casamento. Amélia não se queria separar da mãe, e, como a casa tinha acomodações, os noivos viveriam no primeiro andar, e a S. Joaneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor cônego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua-de-mel para a fazenda da D. Maria. E Amélia àquelas perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãe que, de luneta na ponta do nariz, a admirava, babosa.
Às Ave-Marias a S. Joaneira fechou-se embaixo no seu quarto a rezar a sua coroa, e deixou Amélia só "para se entender com o rapaz". - Dai a pouco, com efeito, João Eduardo bateu à campainha. Vinha muito nervoso, de luvas pretas, enfrascado em água-de-colônia. Quando chegou à porta da sala de jantar não havia luz, e a bonita forma de Amélia destacava de pé, junto à claridade da vidraça. Ele pôs o xale-manta a um canto como costumava, e vindo para ela que ficara imóvel, disse-lhe, esfregando muito as mãos:
— Lá recebi a cartinha, menina Amélia.
— Eu mandei-a pela Ruça logo pela manhã para o pilhar em casa - disse ela imediatamente com as faces a arder.
— Eu ia para o cartório, até já ia na escada... Haviam de ser nove horas...
— Haviam de ser... - disse ela.
Calaram-se, muito perturbados. Ele então tomou-lhe delicadamente os pulsos, e baixo:
— Então sempre quer?
— Quero, murmurou Amélia.
— E o mais depressa possível, hem?
— Pois sim...
Ele suspirou, muito feliz.
— Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem, dizia. E as suas mãos, com pressões temas, iam-se apoderando dos braços dela, dos pulsos aos cotovelos.
— A mamã diz que podemos viver juntos, disse ela, esforçando-se por falar tranquilamente.
— Está claro, e eu vou mandar fazer lençóis, acudiu ele, todo alterado.
Atraiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os lábios; ela teve um soluçozinho, abandonou-se-lhe entre os braços, toda fraca, toda lânguida.
— Oh filha! murmurava o escrevente.
Mas os sapatos da mãe rangeram na escada, e Amélia foi vivamente para o aparador acender o candeeiro.
A S. Joaneira parou à porta; e para dar a sua primeira aprovação maternal, disse, com bonomia:
— Então vocês estão aqui às escuras, filhos?
Foi o cônego Dias que participou ao padre Amaro o casamento de Amélia, uma manhã na Sé. Falou no a propósito do enlace, e acrescentou:
— Eu estimo, porque é a contento da rapariga, e é um descanso para a pobre velha...
— Está claro, está claro... - murmurou Amaro, que se fizera muito branco.
O cônego pigarreou grosso, e ajuntou:
— E você agora apareça por lá, agora está tudo na ordem... A patifaria do jornal isso pertence à história... O que lá vai, lá vai!
— Está claro, está claro... - rosnou Amaro. Traçou bruscamente a capa, saiu da igreja.
Ia indignado; e continha-se, para não praguejar alto, pelas ruas. À esquina da viela das Sousas quase esbarrou com Natário, que o agarrou, logo, pela manga, para lhe soprar ao ouvido:
— Ainda não sei nada!
— De quê?
— Do liberal, do Comunicado. Mas trabalho, trabalho!
Amaro, que ansiava por desabafar, disse logo:
— Então ouviu a novidade? O casamento de Amélia... Que lhe parece?
— Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego... Foi o doutor Godinho... E outro que tal!... Veja você esta corja. O doutor Godinho do jornal às bulhas com o governo civil, e o governo civil a atirar postas aos afilhados do doutor Godinho. Vá lá entendê-los! Isto é um país de biltres!
— Diz que há grande alegrão na casa da S. Joaneira! - disse o pároco, com um azedume negro.
— Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá ir... Eu não tenho tempo para nada!... Eu cá ando no meu fito, saber quem é o liberal e escachá-lo! Não posso ver esta gente que leva a chicotada, coça-se, e curva a orelha. Eu cá não! eu guardo-as! - E, com uma contração de rancor, que lhe curvou os dedos em garra, e lhe encolheu o peito magro, disse por entre os dentes cerrados: - Eu, quando odeio, odeio bem!
Esteve um momento calado, gozando o sabor do seu fel.
— Você se for à Rua da Misericórdia dê lá os parabéns a essa gente... - E acrescentou com os olhinhos em Amaro: - O palerma do escrevente leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher o papo!
— Até à vista! exclamou bruscamente Amaro, abalando pela rua furioso.
Depois daquele terrível domingo em que aparecera o Comunicado, o padre Amaro, ao principio, muito egoistamente, apenas se preocupara com as consequências - "consequências fatais, Santo Deus!" - que lhe podia trazer o escândalo. Hem! se pela cidade se espalhasse que era ele o padre ajanotado que o liberal apostrofava! Viveu dois dias aterrado, tremendo de ver aparecer o padre Saldanha, com a sua cara ameninada e voz melíflua, a dizer-lhe "que sua excelência o senhor chantre reclamava a sua presença"! Passava já o tempo preparando explicações, respostas hábeis, lisonjas a sua excelência. - Mas quando viu que, apesar da violência do artigo, sua excelência parecia disposto "a fazer a vista grossa", ocupou-se então, mais tranquilo, dos interesses do seu amor tão violentamente perturbados. O medo tornava-o astucioso; e decidiu não voltar algum tempo à Rua da Misericórdia.
— Deixar passar o aguaceiro, pensou.
Ao fim de quinze dias, três semanas, quando o artigo estivesse esquecido, apareceria de novo em casa da S. Joaneira: deixaria ver bem à rapariga que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade, as conversazinhas baixas, os lugarzinhos chegados ao quino; depois, pela D. Maria da Assunção, pela D. Josefa Dias, obteria que Amélia deixasse o padre Silvèrio e se confessasse a ele: poderiam então entender-se, no segredo do confessionário: combinariam uma conduta discreta, encontros cautelosos aqui e além, cartinhas pela criada: e aquele amor assim conduzido, com prudenciazinha, não teria o perigo de aparecer uma manhã anunciado no periódico! E regozijava-se já da habilidade desta combinação, quando lhe vinha o grande choque - casava-se a rapariga!
Depois dos primeiros desesperos, desabafos em patadas no soalho e blasfêmias de que pedia logo perdão a Nosso Senhor Jesus Cristo, quis serenar, estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquela paixão? Ao escândalo.