Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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      — Não; é mesmo com o delegado que pretendo falar.

      — Quem é o senhor? - perguntou o homem molemente, abotoando o colete, enquanto o outro, que acordara, coçando com fúria a grenha hirsuta, engrolava escarros.

      — Paulo Jove, estudante de medicina. - Já o homem caminhava quando, adiantando-se, ele ajuntou, em tom confidencial: Olhe, diga que sou do Equador. Tenho urgência, é um caso grave.

      O homem correu o reposteiro e desapareceu. Paulo voltou à escada, encostou-se à balaustrada, com o guarda-chuva a escorrer. Só então pareceu dar pelas calças molhadas. Pôs-se a mirar os pés e, tirando o lenço, passou-o pelo peito, pelos ombros, pelas coxas. Estava regelado e, por vezes, uma dor fina atravessava-lhe a cabeça, como se a varasse um estilete.

      Um soldado subia a escada, com a espada a bater nos degraus. Em cima respirou com força e tomou à direita, lento, achamboado, desaparecendo num corredor, Impaciente, Paulo ia chegando ao reposteiro. quando o homem, com uma voz gosmosa, o chamou:

      — O senhor não pode entrar; espere um pouco.

      — Pois não.

      Afastou-se e pôs-se a passear, arrepelando os cabelos molhados, a pensar em Violante, vendo-a, acompanhando-a na fuga, pelo braço de um homem misterioso que a levava, com ânsia lasciva, os dois cobertos pela mesma capa, correndo, felizes, por entre árvores, como na gravura idílica de Paulo e Virgínia. Vagarosamente, o que fora anunciar, entreabriu o reposteiro e chamou-o: "Pode vir". Precipitou-se: quis deixar o guarda-chuva à porta, a escorrer, chegou a encostá-lo; logo, porém, retomando-o, entrou em pontas de pés, tímido. O homem indicou-lhe um sofá e foi encostar-se à mesa, bocejando. Pôs-se a olhar - a sala, em silêncio, estava iluminada e, sobre a mesa, acumulada de papéis, havia um capote e embrulhos.

      Aquele abandono dava-lhe uma impressão acabrunhadora e, como se aquela sala, que era o vazadouro dos crimes, estivesse impregnada de um fluido mau, com um ambiente sinistro, infeccionada pelas confissões dos réus, como as enfermarias dos hospitais ficam viciadas com a respiração dos doentes, as idéias se lhe foram tornando sombrias. Já não era um doce idílio que ele via introspectivamente, através da claridade da imaginação, que opera, como uma lâmpada mágica, alumiando devaneios e conjecturas - era um crime: Violante a estorcer-se nas mãos brutais de um homem, a gemer, a implorar, meiga e infeliz, com sangue a escorrer-lhe do seio, com lágrimas nos olhos assombrados e, em torno dela, todo o horror de uma espelunca. D'olhos muito abertos, a respiração tomada, viu sair de uma porta fronteira um homem pálido, de barba ruiva, estremunhado, a ajustar ao corpo um robe de chambre de ramagens. O introdutor disse, surdamente, como se não quisesse perturbar o silêncio da casa:

      — É este moço.

      Paulo adiantou-se para o delegado, que se sentara molemente, tomando na mesa uma espátula, com a qual se pôs a bater na pasta.

      — Sente-se - disse em voz pausada e fanha. - Estou às suas ordens.

      O estudante chegou-se à mesa trêmulo, esfregando as mãos e, depois de haver lançado um olhar ao contínuo, que se deixara ficar à porta, disse:

      — Sou estudante de medicina, sr. doutor: Paulo Jove; trabalho no Equador. O que me traz aqui é o desaparecimento de minha irmã.

      O delegado cruzou as pernas e, sem levantar os olhos, friamente, perguntou:

      — Desapareceu?

      — Sim, senhor; hoje.

      — A que horas?

      — Das onze e meia para a meia-noite. Em casa não viram e minha mãe só deu pelo fato muito tarde, quando a chamou.

      — Foi só?

      — Não sei, sr. doutor.

      — Não é natural. - E, depois de uma pausa: Desconfia de alguém?

      — Francamente. sr. doutor... - meneou com a cabeça negativamente e encolheu os ombros. - Com a minha vida pouco paro em casa. Minha mãe, sempre doente ou a cuidar do serviço, raramente aparece na sala. A criada falou em um soldado. - Deu d'ombros: - Mas não creio.

      — Onde mora?

      — Na Rua Senador Pompeu.

      — Seu nome?

      — Paulo Jove.

      — E ela, a moça?

      — Violante.

      — Quantos anos?

      — Dezoito.

      — Dezoito?

      — Sim, senhor.

      O delegado ia garatujando em uma folha de papel; deteve-se e, sem levantar a pena, murmurou:

      — Traços.

      — Como?

      Ele repetiu devagar, insistindo:

      — Traços.

      — Ah! - E Paulo foi dizendo a altura da irmã, a graça do seu corpo flexível, a cor alambreada da sua pele flexível, a abundância ondulante dos seus cabelos negros, o carmim dos seus lábios polpudos, o negror das suas pupilas árdegas, a alvura dos seus pequeninos dentes, a languidez do seu andar preguiçoso, o encanto da sua voz dengosa.

      — Bem: vou mandar ver. O senhor não procurou o delegado da sua circunscrição?

      — Não, senhor; vim diretamente aqui. Mas se o sr. doutor acha necessário...

      Sem responder, o delegado arrepanhou o robe de chambre e, com o papel na mão, pôs-se de pé.

      — Tem pai?

      — Não, senhor: morreu - era major de cavalaria.

      — Pois sim, vou mandar ver; - e foi-se para a ponta do fundo, lento e derreado, tossindo.

      Paulo ficou um momento hesitante, a olhar; ouviu o estralar de um móvel e um resmungo na saleta onde entrara o delegado. Já com o chapéu na mão esteve ainda indeciso, como à espera de uma resposta, até que, desanimado, dirigiu-se à ponta, correu o reposteiro e saiu. "Vou mandar ver!..." E, repetindo as palavras do delegado, desceu as escadas, indignado e desesperançado.

      Chovia ainda. Carroças desciam a rua, aos solavancos, atroando o silêncio. Parado, com o olhar disperso, numa inércia acabrunhada, como esquecido do seu próprio ser, ficou um instante à porta, até que a frase indiferente do delegado repontou: "Vou mandar ver..." Teve um risinho irônico; voltou-se para a escada, com ódio, repetindo entredentes: "Vou mandar ver..." Impetuosamente abriu d'estalo o guarda-chuva, e ia, de novo, lançar-se a caminho, quando viu um tílburi, que se aproximava vagaroso, ao passo tardo de um sendeiro esgrouviado, pobre besta noctâmbula, velha e exausta, que só àquelas horas ermas, de trevas, saía com a ossada e o mormo, para a tarefa que lhe valia o pasto e o abrigo na cocheira, até que, de todo inútil, fosse tocada pelos moços e achasse um canto para morrer, ao claro sol, sob o azul macio do céu. O cocheiro perguntou, em voz pigarrenta: "Para onde?" e Paulo, deixando-se cair na almofada, deu-lhe o endereço.

      Encolhido, sentindo a fria umidade da roupa, ia pensando na irmã: "Talvez a encontrasse em casa, arrependida implorando o perdão". Via-a de joelhos, banhada em lágrimas, agitada pelos soluços e a mãe a afagá-la, numa grande e transbordante felicidade. Mas o cocheiro interrompeu-lhe o sonho:

      — Que tempozinho! E anda por ai moléstia que é um horror!

      — É verdade.

      — A bexiga então... O senhor não imagina. Lá na minha rua dois casos. Ontem foi-se um companheiro meu, deixando mulher e dois filhos. Um rapaz fonte que fazia gosto - vendia saúde. Agora fica praí, sem amparo, a pobre rapariga, com dois pequenos agarrados à saia. Mas que quer o senhor? um homem precisa, não pode estar a escolher. Ele apanhou um freguês para Catumbi e lá esteve com o carro à espera, mais de uma hora, perto duma vala. Até expirar não falou de outra coisa "que apanhara a moléstia naquela viagem. Que se não fosse o demônio da vala..." Mas nós temos de ir a toda


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