Ubirajara: Lenda Tupi. José Martiniano de Alencar

Ubirajara: Lenda Tupi - José Martiniano de Alencar


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tacapes toparam no ar e os dois guerreiros rodaram como as torrentes impetuozas no remoinho da Itaoca.

      Dez vezes as clavas bateram, e dez vezes volveram para bater de novo.

      Os animais que passavam na floresta fujiram espavoridos, como se a borrasca ribombasse no céu.

      Ainda uma vez encontraram-se os dois tacapes e voaram em lascas pelos ares.

      – O ubiratan é forte; mas ha outro ubiratan que lhe reziste. Como o braço de Pojucan é que não ha outro braço. Já viste, joven caçador, o veado nas garras da giboia? Assim vais morrer.

      – Se tu fosses a cascavel que sómente sabe morder, Jaguarê te esmagaria a cabeça com o pé e seguiria o seu caminho. Mas tu és a giboia feroz; e Jaguarê gosta de estrangular a giboia. Não morrerás pelo pé, mas pela mão do caçador. Lança teu bote, guerreiro tocantim.

      Pojucan estendeu os braços e estreitou os rins de Jaguarê, que por sua vez cinjiu os lombos do guerreiro.

      Cada um dos campeões pôz na luta todas as suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da mata.

      Ambos, porém, ficaram imoveis. Eram dois jatobás que naceram juntos e entrelaçaram os galhos ligando-se no mesmo tronco.

      Nada os desprende; nada os abala. O tufão passa bramindo sem ajital-os; e elles permanecem quedos pelo volver dos tempos.

      Um pajé que passou na orla da mata viu os lutadores e esconjurou-os, pensando que eram as almas de dois guerreiros prezos no abraço da morte.

      Já a sombra se desdobrava pelo vale fóra e o sol despedia-se dos cimos dos montes, sem que os campeões se movessem.

      Por fim afrouxaram os braços e cada lutador recuou para contemplar seu adversario. Nenhum mostrava no rosto sombra de fadiga.

      Conheceram que podiam lutar corpo a corpo, a noite inteira, sem que um prostrasse o outro.

      – Tu és igual na valentia e na força ao guerreiro chefe da nação tocantim. Mas Pojucan não consente que haja na terra quem rezista a seu braço. É precizo que tu morras, Jaguarê, para que elle seja o primeiro dos guerreiros que o sol alumia.

      – Pojucan, matador de gente, guerreiro feroz da nação tocantim, Jaguarê deixou-te viver até este momento para saber se tu eras digno de dar-lhe um nome de guerra. Agora que te conhece como o primeiro dos guerreiros que existiram até este momento, elle quer que tua derrota seja a sua primeira façanha.

      Disse, e, arrancando do tronco da emburana a lança de duas pontas, caminhou outra vez para Pojucan.

      – Esta arma que tu vês é a lança de duas pontas. Jaguarê fabricou-a do rijo galho da craúba, endurecido pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a arremessou e teu corpo é o primeiro cujo sangue ella vai beber. Empunha a lança de duas pontas, guerreiro chefe, e ataca Jaguarê para receberes a morte dos valentes.

      Pojucan repeliu a lança que o joven caçador lhe aprezentára.

      – Jámais no combate um guerreiro tocantim atacará seu adversario dezarmado; nem Pojucan preciza da lança. Ataca tu, Jaguarê, que não tens confiança em teu braço; o de Pojucan basta para te prostrar.

      – O orgulho te cega, guerreiro chefe. A lança conhece Jaguarê que a inventou e lhe obedece como o arpão á corda do pescador. Aperta-a bem em tua mão robusta e Jaguarê estará duas vezes mais armado do que tu, que não sabes manejal-a.

      O chefe tocantim cruzou os braços.

      – Toma a lança, Pojucan, se não queres que te chame covarde; pois tu sabes que Jaguarê não te matará dezarmado, mas te abandonará como indigno de combater com o filho do maior guerreiro araguaia, o grande Camacan.

      O chefe tocantim arrojou-se contra Jaguarê que lhe travou dos pulsos e outra vez os dois campeões ficaram imoveis.

      A noite veiu achal-os na mesma pozição. Tres vezes cessaram a luta, e de novo a travaram. Mas afinal se convenceram que nenhum derrubaria o outro.

      Então Pojucan disse:

      – Guerreiro araguaia, é precizo acabar o combate. A terra não chega para dois guerreiros como nós. Finca no chão a lança e caminhemos até á marjem do rio. Aquelle que primeiro chegar, será o senhor da lança e da vida do outro.

      Assim fizeram os dois campeões. Chegados á marjem do rio, dispararam a corrida. Ao mesmo tempo a mão de ambos tocou a haste da lança; mas Jaguarê, arremessado pelo impeto da desfilada, não pôde arrancar a arma que ficou na mão de Pojucan.

      O guerreiro chefe enrista desdenhozamente a lança e caminha para Jaguarê. Não vai como o guerreiro que marcha ao combate, mas como o matador que se prepara para imolar a vitima.

      – Guerreiro chefe, Jaguarê não te quer matar como a serpente que ataca o descuidado caçador. Dez vezes já, se quizesse, elle te houvera ferido com tua propria mão.

      – Abandona a gloria do guerreiro, que não é para ti, nhengaíba. Pojucan te concederá a vida, e te levará cativo á taba dos tocantins para que tu cantes as suas façanhas na festa dos guerreiros.

      – Cativo serás tu, mas não para cantar os feitos dos guerreiros. Tu servirás na taba dos araguaias para ajudar as velhas a varrer a oca.

      Arremessou-se Pojucan avante e desfechou o golpe; mas a lança rodára e foi o chefe tocantim quem recebeu no peito a ponta farpada.

      Quando o corpo robusto de Pojucan tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê de um salto calcou a mão direita sobre o hombro esquerdo do vencido e brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triunfo:

      – Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencivel que tem por arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucan, e proclama o primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que existiu antes delle.

      – Se meu valor, que serviu para aumentar a tua fama, merece de ti uma graça, não deixes que Pojucan sofra mais um instante a vergonha de sua derrota.

      – Não, chefe tocantim. Tu me acompanharás á taba dos araguaias para narrar meu valor. A fama de Jaguarê preciza de um prizioneiro como o grande Pojucan na festa da vitoria.

      – Tu és cruel, guerreiro da lança; mas fica certo que, se tua arma traiçoeira me feriu o peito, o suplicio não vencerá a constancia do varão tocantim que sabe afrontar as iras de Tupan e desprezar a vingança dos araguaias.

      II

      O GUERREIRO

      Retumba a festa na taba dos araguaias.

      As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chamas da alegria.

      Toda a tarde o trocano reboou chamando os guerreiros das outras tabas á grande taba do chefe.

      Era a festa guerreira de Jaguarê, filho de Camacan, o maior chefe dos araguaias.

      No fundo da ocara prezide o conselho dos anciãos, que decide da paz ou da guerra, e governa a valente nação.

      Os anciãos, sentados no longo giráu, contemplam taciturnos a geração de guerreiros que elles ensinaram a combater, e têm saudades da passada gloria.

      Suspenso em frente delles está o grande arco da nação araguaia, ornado nas pontas das penas vermelhas da arara.

      É a insignia do chefe dos guerreiros, a qual Camacan, pai de Jaguarê, conquistou na mocidade e ainda a conserva, pois ninguem ouza disputal-a.

      Eil-o, o velho chefe, embaixo do arco, que sua mão tantas vezes brandiu na guerra. Em pé, arrimado ao invencivel tacape, elle dirije a festa.

      De um e outro lado da vasta ocara, está a multidão dos guerreiros, colocados por sua ordem; primeiro os chefes das tabas; depois os varões; por ultimo os moços guerreiros.

      Vêm depois os jovens caçadores que já deixaram a oca materna e estão impacientes de ganhar por suas proezas a honra de serem admitidos entre os guerreiros.

      Mas para isso têm de passar pelas provas, e sua juventude não lhes consente ainda a


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