Ubirajara: Lenda Tupi. José Martiniano de Alencar
o grande arco, bradou:
– O guerreiro que ouze empunhar o grande arco da nação araguaia, venha disputal-o a Ubirajara.
Nenhuma voz se ergueu; nenhum campeão avançou o passo.
O trocano reboou de novo, e no meio da pocema de triunfo, a multidão dos guerreiros proclamou:
– Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais forte dos guerreiros araguaias; empunha o arco chefe.
Então Ubirajara levantou o grande arco, e a corda zuniu como o vento na floresta.
Era a primeira seta, mensajeira do chefe, que levava ás nuvens a fama de Ubirajara.
Os cantores exaltaram a gloria dos dois chefes: a do velho Camacan, que trocára a arma do guerreiro pelo bordão do conselho; e a do joven Ubirajara, que na sua mocidade já se mostrava tão grande, como fôra o pai na robustez dos anos.
Pojucan teve o consolo de ouvir seu nome, repetido muitas vezes e louvado a par com o de seu vencedor.
Os cantores celebraram depois os grandes feitos da nação araguaia, desde os tempos remotos em que os projenitores deixaram a grande taba dos Tamoios, seus avós.
Quando os nhengaçáras entoaram o canto do triunfo, vieram as mulheres com vazos cheios do generozo cauim e aprezentaram as taças aos guerreiros.
Jandira suspirou; ella era virjem, e como suas companheiras, não podia aparecer na festa dos guerreiros.
Sentiu não ser já espoza, para ter o orgulho de encher de vinho espumante, por ella fabricado, a taça de seu heróe e senhor.
O guincho agoureiro da inhúma resoava na mata, quando começou a dansa guerreira que durou até perto da alvorada.
III
A NOIVA
Ao raiar da luz no céu, Jandira abriu os lindos olhos negros.
Seu canto foi o primeiro que saudou o nacer do dia e acordou em seu ninho a viuvinha.
A doce filha de Majé saltou da rêde que embalára os sonhos castos da virjem, e despediu-se della como a jaçanan que deixa a moita para habitar o ninho do amor.
A virjem tocantim acreditava ter dormido a ultima noite na cabana paterna, que essa manhã ia trocar pela cabana do espozo.
O joven caçador que a amava, Jaguarê, fôra aclamado guerreiro, e entre todos os guerreiros o chefe da nação.
Como guerreiro elle póde tomar uma espoza; e como chefe pertence-lhe a virjem de sua escolha, entre as mais formozas da taba.
Ainda que a virjem tenha um noivo, ou que o pai a destine a outro, se o chefe a dezeja, a vontade de Tupan é que lhe pertença.
Tupan assim ordena para que os grandes chefes possam gerar de seu sangue os mais belos e valentes guerreiros.
Jaguarê antes de ser aclamado chefe já a tinha escolhido, e Jandira não aceitaria outro noivo senão o joven caçador a quem amava.
Ella o espera. Logo que o sol alumie a terra, Ubirajara, o grande chefe, ha de vir buscal-a.
Então a virjem se despedirá de Majé; e irá armar na cabana de seu guerreiro e senhor a rêde da espoza.
Lijeira e contente corre a banhar-se no rio antes que chegue Ubirajara, para quem purifica seu corpo e se unje com o oleo fragrante do sassafraz.
Ella quer que o destemido guerreiro ache seu amor saborozo como o vinho que espumá na taça, e ferve nas veias.
Tornando á cabana, perfumou de beijoim a larga rêde que tecera dos fios do algodão entrelaçados com as penas do guará.
Essa rêde tinha duas vezes o tamanho de sua rêde de virjem, porque era a rêde do cazamento em que devia receber o espozo.
Depois arrumou no urú a louça que havia fabricado para o serviço do guerreiro, e que devia transportar á sua nova cabana.
Quando terminou todos os preparativos, encostou-se á porta da cabana; seus olhos impacientes chamavam Ubirajara.
Mas o guerreiro não vinha, e o sol já tinha subido além da crista da serra.
A luz do dia derramava a alegria pelos campos; e a alegria que lhe afagára os sonhos da noite fujia agora da alma de Jandira.
Então a filha de Majé partiu em busca do noivo que a esquecera.
No mais escuro da mata vaga o chefe dos araguaias.
Seus olhos fojem á luz do dia e buscam a sombra, onde encontram a imajem que traz na lembrança.
Á noite quando o guerreiro dormia em sua rêde solitaria, Arací, a linda virjem, lhe apareceu em sonho e lhe falou:
– Jaguarê, joven caçador, tu dormes descansado emquanto os guerreiros tocantins se preparam para roubar a virjem de teus amores. Ergue-te e parte, se não queres chegar tarde.
Elle erguera-se para seguil-a; mas a virjem formoza desferiu a corrida veloz através da campina e dezapareceu na floresta.
Neste ponto do sonho o guerreiro acordára.
Uma estrela brilhante listrava o céu, como uma lagrima de fogo, e Ubirajara pensou que era o rasto de Arací, a filha da luz.
A jurití arrolhou docemente na mata e Ubirajara lembrou-se da voz mavioza da virjem do sol.
O guerreiro tornou á rêde, esperando achar ali outra vez o sonho que vizitára sua alma; porém o sono fujira de seus olhos.
Quando raiou a primeira alvorada, Ubirajara saiu da cabana e buscou no mais espesso da mata a sombra propicia á saudade.
Seu passo o guiava sem querer para as bandas do grande rio, onde devia ficar a taba dos tocantins.
É assim que os coqueiros, imoveis na praia, inclinam para o nacente seu verde cocar.
Ubirajara ouviu o rumor de um passo lijeiro através da mata; de lonje conheceu Jandira que o procurava.
A doce virjem achára á porta da cabana o rasto do guerreiro e o seguira através da floresta.
– Que máu sonho aflige Ubirajara, o senhor da lança e o maior dos guerreiros, chefe da grande nação araguaia, para que elle se afaste de sua taba e esqueça a noiva que o espera.
– A tristeza entrou no coração de Ubirajara, que não sabe mais dizer-te palavras de alegria, linda virjem.
– A tristeza é amarga; quando entra no coração do guerreiro, o enche de fel. Mas Jandira fará como sua irmã, a abelha, ella fabricará em seus labios os favos mais doces para seu guerreiro; suas palavras serão os fios de mel que ella derramará na alma do espozo.
– Filha de Majé, doce virjem, ainda não chegou o dia em que Ubirajara escolha uma espoza; nem elle sabe ainda qual o seio que Tupan destinou para gerar o primeiro filho do grande chefe dos araguaias.
O labio de Jandira emudeceu; mas o peito soluçou.
A virjem conheceu que o amor de Ubirajara retirava-se della, e que de todo o perderia se o não defendesse.
Então escondeu a dôr no fundo da alma e chamou o rizo a seus labios, a alegria a seus olhos.
Ella sabia que os guerreiros amam a flôr da formozura, como a folhajem da arvore; e que a tristeza murcha a graça da mais linda virjem.
– Chefe dos araguaias, Ubirajara, não desprezes Jandira que outr'ora escolheste para tua noiva. Se então ella era formoza a teus olhos, mais formoza se fará para merecer teu amor. Tu gostavas de seus cabelos negros que arrastam no chão; ella os entrançará com as plumas vermelhas do guará para que te pareçam mais bonitos. Seus olhos negros que te falavam, ella os cercará de uma listra amarela como os olhos da jaçanan. Sua boca, que ainda não provaste, Jandira a encherá de amor para que bebas nella o contentamento.
Jandira esperou a palavra de Ubirajara; mas os labios mudos do guerreiro não se abriram.
– Teu amor, Ubirajara, ficará em meu seio como a flôr no vale. Jandira te dará muitos filhos e todos dignos de teu valor.