A agua profunda. Paul Bourget

A agua profunda - Paul Bourget


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prudente, muito circumspecta, uma pequena senhora, emfim, e a tia, seduzida pelos seus encantos, estimava-a mais do que á sua propria filha, ao mesmo tempo que, por uma piedade natural, mas não menos imprudente, prodigalisava á pequenita, que não tinha mãe, os mais indulgentes afagos.

      O secreto e irresistivel instincto de antipathia quasi animal que tinha tornado insupportaveis a Joanna taes elogios e taes ternuras, justifica-se talvez, para uma creança de treze annos, pelo ciume da affeição materna. Esta aversão tinha-se tornado tão intensa, que um dia que entrou só no quarto de Valentina, encheu de tinta os cadernos que estavam sobre a mesa, despedaçou os objectos que encontrou no armario, deitou ao chão e pisou aos pés o retrato de sua prima, loucamente, furiosamente. Passados dezesete annos, recordava-se ainda do temor, do susto que tinha tido quando a senhora de Nerestaing, que a procurára por toda a casa, a foi encontrar n'aquelle abominavel acto de vingança. E foi sua propria prima quem pediu e alcançou perdão para ella. Um tal delicto tinha, pelo menos, dado como resultado a partida de Valentina, quasi em seguida, para casa d'um outro parente. A mãe comprehendera tudo.

      Por uma anomalia apparentemente estranha, mas que se torna bem logica perante a reflexão, o ciume que tinha por Valentina, foi a causa de que, durante os annos da juventude, Joanna se ligasse a elle mais intimamente. Invejar alguma pessoa é pensar n'ella. É sentir por ella. É, por uma d'estas dualidades desharmonicas, tão familiares á nossa natureza emotiva, sentir ao mesmo tempo attracção e repulsão pela sua presença. A inveja não é, a principio, nem é nunca o odio puro. É mais e menos, por isso que com ella ha sempre de mistura uma admiração dolorosa, involuntaria, revoltada, mas uma admiração em todo o caso, por consequencia, uma especie de amor. Assim se explicam na existencia dos artistas, por exemplo, aonde esta paixão complicada tem como que o seu dominio proprio, as alternativas de exagerada admiração e de descredito entre dois rivaes, tão sinceras quanto são contradictorias.

      Dos treze aos dezoito annos, esteve Joanna persuadida de que não tinha melhor amiga do que Valentina, e era verdade, no sentido de que nenhuma das suas companheiras d'aquella epocha lhe causava impressões tão fortes. Ou fosse porque a fascinassem as bellas qualidades de sua prima, ou porque se revoltasse contra ellas, inteiramente, com uma amargura irritada, tinha-a sempre no pensamento. Quando entraram juntas na sociedade, modificou-se por algum tempo, a sua sensibilidade mal equilibrada, por isso que Joanna teve, então, pela primeira vez, um successo superior ao de Valentina. Esta, que se salientára sempre, emquanto as duas viveram n'um meio restricto, pela verdadeira seriedade, pela delicadeza simples, pela harmonia e suavidade de todo o seu ser, passou logo ao segundo plano, quando começaram a figurar n'um outro theatro. Havia em Valentina uma predilecção especial pela modestia e pelo retrahimento, e em Joanna um desejo de se divertir e de brilhar que faziam d'uma a mais desconhecida das comparsas, n'uma primeira visita, jantar ou baile, e attrahiam em volta da outra todas as attenções tão superficiaes, mas tão estonteantes, de que as «coquetes» ingenuas são muitas vezes victimas, n'essa edade da transição em que nas mulheres desponta o desejo de agradarem.

      O caso é que Joanna se matrimoniou logo no primeiro anno do seu commum debute – e primeiro do que sua prima! A ancia d'este triumpho – o mais lisongeiro para as mulheres – não foi extranha á facilidade com que deu o «sim» ao pedido do barão de Node.

      É preciso acrescentar que este casamento satisfazia ao completo edial que paes, desejosos d'um bom partido para suas filhas, poderiam esperar no anno da graça de 1890. O noivo era uma figura esbelta, possuia um bello nome, uma boa furtuna e o prestigio que exercem, apezar de tudo, mesmo sobre pessoas de linhagem distincta que viveram durante muito tempo na provincia, «os parisienses».

      Julio de Node era frequentador das corridas; pertencia a um dos melhores clubs e salientava-se entre essa «coterie» que faz a moda no verão, em Deauville; nas caçadas, nas margens do Sena e Oise, no outomno; em Pau e na Riviera, no inverno e na primavera em Paris, n'esse Paris que vae da praça Vandome a Longchamps.

      Joanna via-se, antecipadamente, gosando uma vida de continua agitação n'esse turbilhão que tanto seduz muitas mulheres.

      O seu orgulho por causa d'esse casamento era tão profundo, tão completo, que acabara de cicatrizar a antiga ferida da inveja. Taes cicatrizes estão, porém, sempre tão proximas de reabrir!

      Nunca, antes, nem depois, estimou tão intensamente sua prima.

      Chegára ao extremo de a lamentar, quando comparava o brilhante destino que a esperava com o futuro da supplantada Valentina. Mais tarde teria ella que lhe inspirar egual piedade, mas sem ser fingida.

      Faz-se só justiça reconhecendo, para explicar, ou antes desculpar as amarguras das suas desillusões, que se este casamento tinha, a despeito das apparencias seductoras, motivos para não ser muito venturoso, tinha tambem outros para não ser completamente infeliz.

      Joanna teve um só filho que nasceu em condições bem tristes.

      Foi necessario sacrificál-o para salvar a mãe. A maternidade foi-lhe, desde esse momento, defeza.

      Seu marido, que procurava como tantos outros augmentar a furtuna, transaccionando constantemente com os cento e vinte mil francos que constituiam o liquido dos seus haveres, encontrou-se compromettido, pouco a pouco, por muitas especulações infelizes. Jogou para reparar as perdas e perdeu mais. Pediu a assignatura de sua mulher, que lh'a deu a principio, negando-lh'a depois, por conselho dos paes, para não prejudicar a sua independencia.

      As questões de dinheiro transformaram-se, para este casal sem filhos ao qual uma continua dissipação perturba a energia moral, em discussões a principio violentas e que depois degeneraram em disputas. De scena em scena, a separação tornou-se inevitavel. Deu-se antes de findar o setimo anno d'este bello enlace, tão «auspicioso» como diziam as noticias de certos jornaes, quando se celebrou. Durava já havia quatro annos, e Joanna esperava sem cessar que seu marido pedisse uma desligação mais completa dos laços conjugaes, para ficar inteiramente livre e reparar, por uma nova união, a sua fortuna reduzida a menos d'uma terça parte. Esperava isto, e, apezar das ideias religiosas que professava e das da sociedade em que vivia a constituissem na obrigação de resistir a um tal projecto, desejava-o ardentemente.

      O artigo 310 do Codigo Civil que permitte a um dos dois conjuges fazer transformar uma simples acção de separação de pessoas em divorcio, havia um certo tempo constituia o objecto unico das suas meditações, visto que um tal artigo lhe abria as portas d'um segundo casamento, muito embora se achasse em contradicção com a sua attitude, contrariando a familia, e a sociedade o levasse a mal.

      Tudo isto nada valia para ella em face da precaria existencia que levava, n'um segundo andar da rua Barbet-de-Jouy, aonde se tinha refugiado, apenas com alguns mil francos de renda, – tanto quanto gastava em toilettes no principio da sua vida de casada – e a dois passos do sumptuoso palacio em que habitava a prima, transformada em marqueza de Chalinhy!

      A cada desastre na vida de Joanna correspondia uma mudança feliz na de Valentina, o que para aquella era como que agudo punhal revolvido na ferida e cuja ponta resvalasse até o mais intimo da sua alma e rasgasse a sua propria carne.

      Na mesma occasião em que dava á luz, no meio de torturas, o filho para sempre perdido, casava Valentina com Chalinhy, vinha, em seguida habitar um sumptuoso palacio na rua Varenne, digno de se comparar com o historico Nerestaing que lhe pertencia.

      Um anno depois dava á luz uma filha, e passado outro anno nascia um menino, que viviam, cresciam, e cujos encantos faziam a felicidade do casal. E, depois, umas após outras, inexperadas heranças deram á feliz mãe uma opulencia que ultrapassava muito as mais exigentes ambições que havia sonhado para seus filhos. Da mesma maneira que o barão de Node, Chalinhy frequentava as altas regiões do sport e da moda, com a differença, porém, de ser tão bom administrador da sua fortuna, como aquelle era dissipador.

      Possuia um geito e feitio especial para defender os seus interesses, não muito vulgar nas existencias de luxo e prodigalidade.

      Porque se nem todas as pessoas abastadas se arruinam, para conservar uma fortuna é quasi necessaria tanta habilidade como para a adquirir. Tinha, pois, um dom caracteristico de bem calcular, qualidade esta que é, em geral, independente da nossa intelligencia e dos nossos habitos. A prova está em


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