A agua profunda. Paul Bourget

A agua profunda - Paul Bourget


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não apostava a favor d'um cavallo que não ganhasse; não dava ao seu agente na bolsa ordem para realisar uma compra que os valores negociados não tivessem uma alta imediata, e comtudo era mediocre cavalleiro e não menos mediocre bolsista. E se percebia pouco de questões d'arte, raras vezes se enganava na compra de qualquer objecto artistico. E assim em tudo o mais.

      N'uma palavra, á medida que o viver dos Node se tornava desagradavel, o dos Chalinhy era cada vez mais intimo e affectivo, espandindo-se e revelando-se o seu bem estar pelo menos n'estas manifestações exteriores que fazem dizer ao publico: «que familia tão feliz.»

      Como não havia, pois, de reapparecer a antiga inveja cada vez mais forte, mais intensa, mais arreigada, no coração da prima, separada do marido, arruinada, vagamente desacreditada ja; como não havia ella de repetir sempre que passava, em carruagem alugada ao mez, defronte do perystilo do principesco palacio da rua Varenne o «porque ella e não eu?» murmurado, quando era ainda creança, á vista das quatro soberbas torres ameadas do Castello de Nerestaing.

      Perigosas palavras, mas que ficariam todavia ineficazes como tantas outras exclamações de ciume e inveja, soltadas a cada momento n'esse Paris de luxo e ostentação, por tantas vaidades humilhadas, ás quaes serve de atroz supplicio a visão da opulencia exhibida pelo proximo.

      Quiz a infelicidade que Valentina ou não advinhasse sequer a existencia de taes sentimentos, ou então que, se realmente os surprehendeu, pretendesse por uma excessiva generosidade dissipal-os á força de bondade. É a peor e mais perigosa falta que a invejada pode commetter para com a invejosa.

      Certos processos demasiadamente generosos, pela superioridade moral exasperam ainda mais a funesta paixão.

      No caso presente, havia ainda um outro perigo, que consistia, sobre tudo, em a parente mais rica associar em todas as suas diversões a menos afortunada. Almóços, jantares, excursões pela cidade, passeios ao campo, um camarote no theatro, tudo servia de pretexto a Valentina para poupar a Joanna a mais pequena despeza e para lhe proporcionor ainda os maiores prazeres.

      Não reflectia, porém, não pensava que tendo Joanna junto de si era tel-a tambem sempre proxima de seu marido.

      Não ha nada mais propicio ás seduções do que esta intimidade entre um homem novo e uma mulher galante, que um proximo parentesco torna naturalmente familiares, que se chamam pelo nome de batismo, sahem juntos sem que ninguem se admire d'isso, escrevem-se quando estão separados, habituam-se emfim, a todas as intimidades do amor, n'uma amizade bem depressa perturbada, se um d'elles se deixa invadir de pensamentos que não sejam d'uma lealdade e simplicidade absolutas.

      Depois de tantas humilhações, a tentação de tirar uma desforra, roubando a Valentina o coração de Chalinhy, tornou-se irresistivel para Joanna.

      Tal foi a primeira ambição d'um instincto de vingança feminina, já de si bem perfida.

      Estes desejos de exercer influencia nos sentimentos são sempre acompanhados d'uma garridice physica, que tem por fim excitar n'aquelle que vizam a emoção ingovernavel dos sentidos.

      Uma vez entrados n'este caminho a provocadora e o seu cumplice não podem mais responder por si.

      O obscuro e terrivel animalismo que impera, a despeito do nosso orgulho e das conveniencias sociaes, nas relações do homem e da mulher, exerce por fim o seu predominio fatal.

      Quer-se preocupar o marido d'uma rival, prendel-o, perturbal-o – e desperta-se, como aconteceu a Joanna de Node, a amante d'aquelle com quem sómente se pretendia brincar – e nada mais.

      Passava já d'um anno que esta ligação começara e em logar de encontrar n'este triumpho sobre sua prima escarnecida e enganada, uma pacificação para o seu odio, a culpada sentia cada vez maior exaspero. Por uma contradicção que mostrava absoluta confiança de Valentina, longe de amortecer o rancor de Joanna, ao contrario, apenas o irritava.

      O papel de tola, desempenhado pela marqueza de Chalinhy, era revestido de muita delicadeza e muita innocencia! Tão morigerada, tão completa, tinha uma tal maneira de não ver o mal, que não permittia motejos. Não dava pela sua existencia, pela simples razão de que nunca o havia praticado, nem mesmo pensado em o praticar. O mundo que começava a perceber a existencia da intimidade entre Chalinhy e Joanna, não acreditava, sem reservas, na ignorancia da marqueza.

      «Finge que não percebe, por causa dos filhos…» dizia-se. A baroneza de Node, porém, sabia perfeitamente como lhe tinha sido facil abusar d'uma creatura que se julgaria aviltada por suppôr a sua companheira d'infancia capaz d'uma infamia. Sabia tambem, ou antes advinhava, que esta situação ridicula, para qualquer outra, d'uma esposa enganada por uma das suas parentas mais proximas e quasi que á sua propria vista, não provocava no seu meio, nenhum epigramma contra Valentina.

      As más linguas misturavam, involuntariamente, á sua ironia sobre uma tal ingenuidade a expressão irresistivel d'uma estima forçada.

      As mais crueis diziam: «Chalinhy tem razão, a sua casta mulher é tão fastidiosa!..» ou então: «esta pobre Valentina é realmente muito bondosa.»

      O que lhe acontece é perfeitamente natural… ou ainda: «Esta Chalinhy é em verdade virtuosa, bonita, terna e perfeita; mas não sabe agradar ao marido! É o seu unico defeito; tanto peor para ella…»

      Estes ditos e outros iguaes, onde se aprecia a honra do mundo, em presença d'uma perfeição que desconcerta o seu pessimismo facil, marcam o extremo da malevolencia.

      Não impediam que a marqueza tivesse em volta de si uma atmosphera dum respeito cada vez mais deferente, e que a sua feliz rival não percebesse nos mais insignificantes indicios o começo de uma desconsideração.

      Uma mulher nova, que se sabe tem um amante, é logo tratada pelas outras mulheres com uma curiosidade, e pelos homens com uma attenção igualmente insultantes.

      Adivinha nos olhares d'ellas o interesse curioso e por vezes insolente, que as prende ás clandestinas aventuras amorosas; e no d'elles a secreta esperança d'um amor possivel.

      Contra esta condemnação da sua falta pela sociedade, a mulher que ama não tem senão um refugio, a felicidade que dá ao ente amado. Ai! Não foi necessario muito tempo para Joanna perceber que não fazia a felicidade de Chalinhy, e que o obstaculo a essa felicidade provinha da profunda affeição que este homem tinha, por quem? Pela propria esposa que trahia! Muitos maridos infieis são assim: a familia não consegue amortecer n'elles, de todo, os apetites de gôso e de variedade, que adquiriram em solteiros.

      A familiaridade quotidiana diminue e como que amortece o amor. Acontece mesmo, é até um caso muito frequente, que a existencia lado a lado, em logar de produzir a afinidade, a fuzão dos corações, a diminue, e que, apezar de se verem todos os dias, muitos esposos é como se não se vissem.

      Ainda mesmo que a mulher não seja tão pudica e reservada e o homem severo e susceptivel, como eram Valentina e Norberto de Chalinhy, estes retrahimentos intimos tomam por vezes uma tal intensidade, que dão a explicação facil de muitos erros.

      Mas se estas impressões de monotonia e de friesa collocam o que as experimenta, no lar conjugal, á mercê de todos os caprichos dos sentidos e até do coração, não deixam com tudo de se achar presos a esse lar, que abandonam, pelas suas affeições mais intimas.

      Engana sua mulher, e não deixa ella por isso de ser a que usa o seu nome, a mãe de seus filhos, a companheira que occupa no seu pensamento um logar unico.

      Mente-lhe mas respeita-a. Ultraja-a em segredo, e os seus devaneios não o impedem de pôr acima, muito acima das amantes d'um momento, a companheira das horas principaes e mais sérias da sua vida.

      Foram estes os sentimentos que Joanna de Node encontrou sempre no coração do amante, durante os doze mezes da sua ligação, os quaes, facilmente se adivinha, produziam a irritação constante, a tortura permanente da ferida que a inveja abrira na sua alma!

      Se acontecia fazer a menor observação critica que podesse attingir Valentina, ainda que muito de longe, uma visivel sombra de contrariedade passava logo pelo rosto de Chalinhy e o seu olhar tornava-se severo. Se fazia uma allusão á possibilidade de a intriga amorosa, em que se achavam


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