Contos Phantasticos. Braga Teófilo

Contos Phantasticos - Braga Teófilo


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dentro? O tapiz verde da relva fresca, lubrica, que a chama para vir doidejar ali n'um volteio feérico, febril, esconder-lhe-ha o lodo de um charco estagnado que a ha de engulir para sempre?

      Tenho medo de vêl-a assim, com os olhos fitos no horisonte, n'essa morbidez do extasis; a vertigem póde sacudil-a, e precipitar-se, como a borboleta prateada e indiscreta. A sua alma eleva-se para o céo; porque vôa tão cedo para cima a nevoa da madrugada, de uma alvura nitente? A andorinha quando parte, vôa na aza da rajada hybernal que a arrebata.

      Mas o mundo acariciou-a sempre; porque se esconde pois e foge d'elle? Será a reminiscencia viva do foco de luz d'onde saiu, que lhe inspira tamanha anciedade, e lhe abre n'alma uma saudade vivissima, que mata? Ás vezes está tranquilla, immovel, como quem escuta a toada de um concerto mavioso que embala e com que se adormece. Oh, quem ousará despertal-a? Seria perturbar a crystalisação de uma gota de orvalho que se transforma em perola. Outras vezes tem o olhar pavido, firme, de quem contempla e pasma ante uma visão immensa e augusta. Que apparição risonha virá fallar-lhe? Eros, na solidão remota da noite? Será o desejo de vêl-o, o desalento do impossivel, que a fazem reconcentrar assim n'essa dôr? Uma lagrima era a gota do oleo aromatico da alampada escondida; em vez de fazel-o desapparecer, envolto na nuvem branca e etherea, a lagrima trazel-o-hia como um grande astro que attrae após si myriades de planetas.

IV

      A tarde declinava amena, festiva, com o ultimo lampejo de graça que deixa presentir já a melancholia do outomno. Emma ergueu-se da mesa; o rosto estava deslumbrante de transfiguração, possuida do sentimento do infinito, que lhe dava uma expressão sobrehumana, excelsa, que se não podia fitar, similhante á Seraphita enlevada nas illuminações swedenborgianas, ao transpôr os precipicios icarios, inaccessiveis dos fiords da Norwega.

      N'aquella tarde parecia oppressa por uma angustia mais intima. Segui-a, queria admiral-a na altura a que se remontava, queria que me fizesse herdeiro do seu manto prophetico, no instante em que se librasse no carro de fogo, como Elias. E ella era bem a prophetisa do deserto. Approximei-me. Estava serena e placida, como quem mergulhára no oceano da contemplação. De mais perto vi que dormia, com um somno hypnotico. Ficára-lhe um sorriso estampado nos labios; parecia o involucro de uma chrysalida mysteriosa; a borboleta voára para a luz, abandonára-o na terra.

      Conservava então um livro sobre o regaço; a mão inerte repousava sobre a pagina. Um leve signal notava uma phrase profunda em que a alma se lhe absorvêra: «Um anjo está presente a um outro, quando elle o deseja

      Procurei vêr de quem era o livro. Era escripto por Swedenborg, o patriarcha dos theosophos do norte, o que levou mais longe as relações com o mundo invisivel. O livro intitulava-se: A sabedoria angelica da omnipotencia, omnisciencia, omniprezensa dos que gosam a eternidade, a immensidade de Deos.

      Emma acordou de subito. Senti um estremecimento de terror, começava a comprehender a sua solidão. Eu mesmo tinha estudado a segunda vista, colligido alguns phenomenos de suggestão que se passavam no meu espirito, conseguira por uma excitação nervosa perenne a hypnotisação voluntaria.

V

      Tambem no livro De varietate rerum descreve Jeronymo Cardan a faculdade que tinha de experimentar o extasis espontaneo, e de tornar objectivas as imagens creadas na sua mente: «Quando eu quero, vejo o que me apraz, e isto não só com o espirito, mas com os olhos, com essas imagens que eu via na minha infancia. Mas agora creio que ellas são o resultado de minhas occupações. É certo que nem sempre possúo esta faculdade, comtudo não a tenho senão quando quero. As imagens que eu vejo estão sempre em movimento; é assim que vejo as florestas, os animaes, os diversos paizes e tudo quanto eu quero vêr. Creio que a causa de todos estes effeitos está na actividade da minha imaginação e n'uma vista penetrantissima. Desde a minha infancia tinha de commum com Tiberio Cesar o poder vêr na obscuridade mais profunda, como em pleno dia. Porém não conservei muito tempo esta faculdade. Apesar d'isso vejo ainda alguma coisa, postoque não posso distinguir bem o que vejo; e attribuo este effeito ao calor do cerebro, á subtileza dos espiritos vitaes, á substancia do olho, e á energia da imaginação.» (Lib. IV c. 43.)

      É esta uma qualidade vulgarissima nos povos do norte, principalmente os insulares, conhecida sob a denominação de Second sight. Ahi a imaginação tendo pouca variedade de paizagem que a fecunde, volta sobre si o que ha edificado e exagera-lhe as proporções. Por isso as theogonias do norte são terriveis. As avalanches suspensas a precipitarem-se, os nevoeiros diffundidos por toda a parte como um sudario immenso e frio, a aurora dos polos a desdobrar-se esplendida, tudo faz sonhar de um mundo phantastico, escutar essas toadas vagas, indefiniveis dos espiritos que se annunciam pelo ressoar de uma harpa longinqua. O dom da visão é commum; é assim na ilha de Ferroë. Que virgens se não ostentam n'uma apparição repentina, e que o vidente procura, sem nunca mais poder encontral-as! Balzac, o observador sem egual do coração, sentiu toda a poesia do norte no poema de Seraphita; é um mysterio, o enlace da philosophia e da poesia, um extasis indecifravel de Swedenborg, contemplado nas fiords da Norwega. O delirio de Seraphita é o problema incessante da percepção immediata; o seu amor é mais puro que o ideal de Dyotima, é elle que lhe dá a segunda vista.

      Taishatrim e Phissichin são os nomes que em lingua gaëlica se dão aos que tem esta faculdade. Os factos observados são innumeros, o seu estudo é dos nossos dias. Kant combateu a doutrina visionaria de Swedenborg, mas não attendeu que este phenomeno physico era todo sentimental; viu no patriarcha dos videntes do norte um impostor. A vida exemplarissima de Swedenborg é um desmentido completo e irretorquivel aos argumentos d'esta ordem.

      Como explicar a inspiração continua, a segunda vista? A alma paira entre dois mundos – o physico com que se relaciona pelos sentimentos, o psychico com que se relaciona pelos presentimentos; se é attrahida para o mundo dos corpos, predominam n'ella os instinctos, e as sensações, todas relativas, só lhe advém pela presença dos objectos; se a alma por um desejo vehemente se eleva do estado de anima ao de spiritus, os sentimentos desprendem-se do nexo das relações terrestres, e conhecem tudo independente das sensações pela representação subjectiva. É o que acontece aos poetas, cantando a belleza de fórmas não sonhadas, a reminiscencia de harmonias não ouvidas.

VI

      Emma estava n'aquella tarde tão affavel! tinha por certo a consciencia de ir em breve completar-se na essencia de algum anjo. As suas fallas eram como suspiros. Lançou-me um olhar interrogativo, de quem temia fazer-me uma pergunta indiscreta. Eu desconhecia-lhe aquella affabilidade de seraphim, costumado a vêl-a sempre aéria, desdenhosa do mundo, radiante como na transfiguração do Thabor. Apertei as mãos d'ella entre as minhas, queria tirar um som d'este instrumento celeste, cujo segredo de harmonia era só percebido pelos anjos. Se podesse desferil-o, havia de perguntar-lhe o motivo de tanta tristeza, a intensidade d'essa dôr tão intima, tão espiritual, que se não póde exprimir na materialidade phonica da palavra. Ella adivinhou o meu desejo:

      – Tens uma vontade energica? – perguntou-me quasi a medo e de um modo sybillino. Seria uma phrase abrupta para qualquer, e inintelligivel até; eu porém que devo á actividade só d'esta faculdade tudo quanto sou, as grandes dôres, os impulsos irresistiveis, as glorias sonhadas, a realisação dos mais exiguos appetites, que a encontro na intensidade absoluta do Fiat, que é Deus, que a vejo nos grandes factos do espirito, a Religião, o Direito e a Arte: na religião manifestando-se emotivamente na fé; no direito, no accordo dos contractos individuaes; na arte, no ponto onde os gostos diversissimos se harmonisam, isto é o bello; eu, repito, comprehendi aquella interrogação na sua plenitude. E começava a conhecer mais o poder da vontade porque acabava de observar o resultado do acto em que a exercera.

      Emma fitou-me com um olhar profundo; o semblante era magestoso e santo, como o frontispicio de uma cathedral da Edade média; as flexas, as linhas architectonicas a infinitivarem-se para o alto, eram os seus cabellos; o olhar, o olhar que me opprimia n'esse instante, era mysterioso como uma ogiva sombria. Tive o medo do neophyto, quando ouve mugir a caverna, e escoar-se a brisa gelida e olorante pela fenda do penhasco, e quasi que se esvae em terra sem sentidos, ao vêr attonito as convulsões do hierophante. Emma perguntou-me se eu cria nas relações com o mundo invisivel. Hesitei um instante, depois volvi:

      – Creio,


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