Contos Phantasticos. Braga Teófilo

Contos Phantasticos - Braga Teófilo


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os ventos cáem de estouro sobre o galeão.

      – Que San-Thiago, o bom apostolo das Hespanhas, seja comnosco, murmurou o homem do leme, ao apagar-lhe uma maré a luzinha da bitácula. Que o bom Jesus dos mareantes nos ampare n'esta tribulação, Ave Maria!

      A tempestade recrudescia surda á voz do pobre homem de quarto, que não sabia já o rumo que levava. Pouco depois, as ondas envolveram-n'o no seu marulho, e o sorveram no pelago insondavel.

      Sem governo, o galeão altivo, cruzando-se sobre duas ondas que rebentaram sobre elle, estremeceu como aluido pelo cavername e costado; o mastro grande, gemendo sobre si, estalou, e sumiu-se na corrente das aguas. Por instantes ninguem respirou. Só o capitão Fernão de Mendonça, conhecendo que o temporal amainara, gritou com intrepidez:

      – Salta arriba!

      A tempestade amançara consideravelmente; via-se espelhado em todos os semblantes um sorriso de esperança, illuminado ao clarão diaphano do santelmo, que reluzia no tope dos mastros.

      – Salvé! salvé, oh Corpo Santo! – gritaram todos possuidos de um regosijo expansivo.

      – Podemos agora contar com a bonança, – disse a voz animadora do padre capellão, – que o sacro fogo de Santelmo se nos mostra risonho e mensageiro de paz. Oxalá que sem mais desgraças possamos dizer como o malaventurado soldado das Indias, o bom Luiz de Camões:

      Vi nos ceus claramente o lume vivo,

      Que a maritima gente tem por santo,

      Em tempo de tormenta e vento esquivo,

      De tempestade escura e triste pranto.

      – Mestre Fernão de Mendonça! – interrompeu o gageiro, – o galeão tem um enorme rombo na prôa, e d'aqui a meia hora estaremos todos no fundo, se vos não apraz lançar esta lancha ao mar. – E foi-se cantarolando aquellas trovas do Auto da barca do Inferno, do popular Gil Vicente:

      Á barca, á barca, boa gente,

      Que que queremos dar a vela;

      Chegar a ella, chegar a ella.

      O tom frio com que dissera a ruim nova fazia julgal-o filho da rajada, como se cria nas incarnações da mythologia grega. Ouvida a falla do capitão, foram saltando todos para o batel. Pouco depois a náo soberba da India começara a afundar-se. Ao vêl-a sumir-se, o padre capellão lançou-lhe a benção, e proferiu uns versiculos da oração dos mortos. A mudez tornava mais sublimes estes instantes. Era como na morte de um heroe, que baqueia ferido no auge da luta. As lagrimas borbotavam dos olhos dos velhos mareantes ao perderem para sempre aquelle companheiro das refregas. O batel não podia com a tripulação toda; o mar estava brazeiro e a cada momento entrava-lhe pela borda.

      Assim foram andando á mercê das correntes, sem que transluzisse no horisonte escuro um clarão de esperança. O ranger dos remos fazia lembrar de hora em hora o estertor de uma vehemente agonia. O mar e a fome infundiam n'alma o tedio da vida.

      O mar continuava roleiro. A este tempo uma onda encapellada rebentou quase de choque sobre o batel. Era preciso alijar para alivial-o. O capitão deitou sortes, para vêr os que iriam ao mar. Caiu a sorte sobre o intrepido gageiro. Pero Gutterrez, um velho marinheiro, atirou-se de livre vontade. Fernão Ximenez parecia de tal modo embebido na dor funda que alentava n'alma, que não sabia o que se passava em volta de si. A sorte fatidica caira tambem sobre o irmão. Despertou da abstracção dolorosa, ao abraço fraterno extremo. Repentinamente comprehendeu tudo com a lucidez de que o espirito se apossa nos momentos solemnes da vida. Deteve-o um instante:

      – Uma vez sacrificaste ao meu amor todas as tuas esperanças! É bem que o reconheça; agora estimo a vida só para dal-a por ti. – E desprendeu-se dos braços do irmão, com a resolução do desespero, e arrojou-se á voragem.

      Gaspar Ximenez permaneceu attonito, interdito ante o estranho heroismo. O sol ia já alto, o céo tornava-se limpido e sereno, o horisonte abria-se immenso, como a expansão de um pensamento de alegria. Depois de haverem remado bastante ainda, descobriram-n'o a distancia seguindo extenuado o batel. A energia sublime do seu heroismo e dedicação commovera todos os corações. Quizeram unanimes recebel-o, estava já sem forças, quasi immovel. O amor fraternal resplandecera com espanto. Os membros regelados começaram de novo a sentir vida com a reacção do calor.

      O mar ia amansando progressivamente, e antes do cair da noite viram com pasmo e alegria doida alvejar uma vela. Saudaram-na com a celeuma do regosijo. Quando passados dias chegaram a beijar a terra de seus paes, Fernão Ximenez foi professar, cumprir o voto n'um mosteiro, para não tornar o amor do irmão impossivel.

      Lava de um craneo

      Quantas risadas se escutam perdidas no ár, que ás vezes são um punhal invisivel, brandido por mão diabolica, um veneno propinado a occultas, que infunde na vida o desalento, o tedio, a indifferença por todos os grandes sentimentos que nos agitam e nos elevam! O riso é a expressão mais energica do desespero, quando elle tem um timbre satanico, que gela, e se repercute na alma como o estampido de uma detonação que fulmina; então, mata mais do que a ponta de um estylete penetrante, embebida no aconito baço, que fere e não deixa vêr a cicatriz. Quem não ha soltado uma vez na vida uma d'essas risadas, que não seja uma loucura, uma impiedade, uma provocação, uma mentira, talvez um crime? Um dia ri tambem d'esse modo; é remorso que ainda hoje me punge.

      Eu vivia ignorado, obscuro, trabalhando na minha agua-furtada, alimentado pela febre da aspiração, pelo pensamento de exageradas vigilias; era a contumacia da desesperação que me dava forças, e me fazia caminhar incansavel sem saber para onde. Este vacuo da existencia amputava-me para todas as distracções, via em tudo uma futilidade, sentia-me máo, com uma vontade de torturar, de contradizer, de estar sempre em hostilidade com todas as idéas que não fossem as minhas. A dialectica fôra para mim uma arma, que ao passo que a manejava com mais presteza, me tornava mais intolerante. A solidão déra-me por um excesso de vida subjectiva uma susceptibilidade tactil, tornava-me perscrutador, analysta; pretendia lêr em todas as physionomias, deprimil-as ante a minha consciencia, como um juiz boçal, que não póde convencer-se de que o réo que interroga esteja innocente. Saía para as ruas, a luz opprimia-me, a multidão atropellava-me, sentia-me olhado, como nos tempos do absolutismo theocratico aquelle que vergava ao peso do anathema.

      Um dia saí para respirar o ár livre de uma bella manhã de verão; uma veia sarcastica, provocadora, não deixava harmonisar-me com a serenidade da natureza. Vinha pelo mesmo passeio um sujeito magro, fumando uma ponta de cigarro. A distancia ainda comecei a analysal-o; cada vez que o fitava sentia em mim uma hilaridade irrepressivel; parecia-me uma cara insignificativa. De mais perto representava-me uma incarnação do grotesco, do comico objectivo, como se encontra nas goteiras das cathedraes da Edade media. Trazia uma vestimenta velha, esfarrapada, que produzia uma antithese perfeita com a sua edade. Mais ao pé, vi que tinha um fulgor de vida nos olhos, o movimento, a expressão de uma intensa actividade interior. Eu tinha caminhado para elle com um riso mofador, com pretensões a observal-o, este casquilho em quinta mão, e fui-lhe ao encontro a pretexto de accender um charuto.

      Conheci então o valor da phrase com que o povo exprime um desgosto intimo e repentino: caiu-me o coração aos pés. Via n'aquelle fato esfarrapado de escovado, a lucta de uma alma, que arcava com a miseria, de um homem, que aspirava á decencia, e que proseguia temeroso, como conhecendo que a vestimenta o degredava e o destituia de importancia, que um descuido qualquer o expunha aos apupos da vadiagem. Assim explicava commigo aquelles áres affectados de elegancia, que despertaram a risada, que resôou só dentro em mim. Era tambem criança, tinha uma figura trigueira, uma certa vivacidade de movimentos, uma timidez que se não accusa e se transforma em reconhecimento á menor consideração.

      Pedi-lhe lume com um tom levissimo de ironia. A affabilidade desarmou-me; o coração doeu-se ao primeiro impulso de sua crueldade. Tinha vontade de confessar-me seu amigo; era-o n'esse instante, com todas as veras de alma.

      Dias e noites a imagem do pobre rapaz a fluctuar-me na mente; eu estava indisposto commigo, procurava equilibrar a vida de modo que podesse alcançar essa virtude sublime da bondade, filha quasi sempre


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