Ao de Leve. Camacho Brito
está. Não se mexe na barriga de quem come.
Era um grande philosopho, o general.
Uma sogra nem de barro á porta.
Andava elle pelo Algarve a tratar de negocios, quando o chamaram a Lisboa, por telegramma, com a maxima urgencia. Não lhe diziam do que se tratava; mas, como era o medico quem lhe telegraphava, ficou n'um susto de morte, calculando que ou a mulher ou o filho se encontrasse gravemente doente. Pouco habituado a ser feliz, imaginou logo o peor.
O primeiro comboio partia d'alli a doze horas e, como ainda pudesse servir-se do telegrapho, correu a pedir informações. Disseram-lhe que era a sogra que adoecera no mesmo dia em que elle deixára Lisboa, e que a doença se aggravava de momento para momento, receando-se um desenlace fatal. N'um grande ah! de allivio e satisfação, como precisava de assignar uma escriptura dahi a tres dias, foi-se deixando ficar, pedindo que o informassem, por via telegraphica e postal, dos progressos da doença.
Receava elle, pouco habituado a ser feliz, que a doença não fosse em progresso, e por isso queria receber noticias amiudadas, se fosse possivel a toda a hora. A doente peorava a olhos vistos, e dizia o medico que a pneumonia degenerava em typho, sendo possivel que houvesse meningite á mistura. Elle tinha uma enorme confiança no doutor, que já lhe assistira á morte de toda a familia, e a quem elle conservára o partido, não para o tratar a elle, á mulher ou ao filho, mas tão sómente para a sogra. Rematados os seus negocios, metteu-se no primeiro comboio, com o coração aos baques, como quem aguarda uma sentença. Descia o medico a escada, quando elle a subia esbodegado, e com bagas de suor perlando-lhe a vasta fronte.
– … Vi-a morta, meu caro amigo. Lancei mão de todos os soccorros, e posso dar-lhe a boa nova de que passou todo o perigo. A crise fez-se hoje mesmo, e agora é só questão de tempo.
Subiu o resto das escadas a cambalear, como um ebrio, e atirando-se para cima do sophá que havia na sala de entrada, n'um abandono de quem se vê irremediavelmente ludibriado:
– E eu que tinha tanta confiança n'esta besta do doutor!..
A policia, ajudada pela guarda municipal, fartou-se de espancar os cidadãos pacificos, realizando muitas prisões.
A estrada, larga e poeirenta, passava junto á porta sempre aberta do jardim, marginada de choupos e eucalyptos.
Toda a gente das aldeias proximas por alli fazia caminho, no giro da vida ordinaria, homens, mulheres e creanças, alguns descalços, e outros rotos, a maior parte sem pau nem pedra, gente pacifica como bois de trabalho, muito pacifica e muito humilde.
Aos domingos, nos dias santos, quando havia festa n'alguma egreja do sitio, por alli passavam ranchos de moças garridas, em cabello, cantando e rindo, cada qual pelo braço do seu namorado, parando aqui e além, aos abraços e beijos, como numa kermesse flamenga.
Pois era n'esses dias que o Pandorga, locatario do jardim, quasi escondido por detraz de uma parede de buxo, atirava os cães para a estrada, açulando-os ás canelas de quem passava. Csi, csi, e arregalava o olho, guardado no seu esconderijo, rindo muito, sem fazer barulho, quando os cães rasgavam as saias das raparigas ou as calças dos homens, e muito mais quando lhe appareciam de rojo, após a lucta, levando ainda nos dentes boccados de carne em sangue.
Ora succedeu que um dia havia festa alli perto; como o Pandorga açulasse os cães —csi, csi– contra um bando alegre de camponezes, rapazes e raparigas que iam passando a cantar, pacificos como bois de trabalho, ouviu-se um estalo sêcco, como um rebentar de escorva, e o baque d'um corpo que cae, lá adeante, por detraz da parede de buxo. Soube-se depois que tinha morrido o Pandorga, e os cães nunca mais assaltaram as gentes que passavam pela estrada, larga e poeirenta, e de quando em quando paravam, abraçando-se e beijando-se, como n'uma kermesse de Rubens.
Hontem, na praça de touros, houve uma ligeira manifestação de desagrado á Familia Real. O rei não assistia ao espectaculo.
Falava-se muito das suas valentias, embora ninguem citasse d'elle uma façanha authentica, com testemunhas de vista. Era volumoso, e d'ahi concluiam que era forte; era gabarola; muita gente acreditava que elle tivesse nos musculos tanta força como na lingua. Contava elle que d'uma vez matára um boi com um sôco, e n'um dia em que passava rente a um acampamento de ciganos, armados de cacetes e espingardas, como percebesse que lhe faziam troça, desatou aos pontapés a toda aquella malta, pregando com o mais atrevido no alto d'uma azinheira que estava longe d'alli uns poucos de metros.
Os que melhor o conheciam, mofavam das suas farroncas; mas não faltava quem acreditasse nas proezas de Ferrabraz, intrepido até ao sacrificio da vida, sem lhe bulir um cabello. Ora succedeu que um dia, vindo com a familia a caminho do arraial, n'uma aldeia da visinhança, alguem o preveniu de que se preparava uma emboscada, lá adeante, n'um cotovêlo da estrada antes de chegar á ribeira. E vae elle então, muito volumoso, pallido como se todo o sangue lhe refluisse ao coração, os cabellos em pé, como se visse deante de si a guela escancarada d'um leão com fome, apalpa-se como quem procura alguma coisa, e batendo no hombro da companheira:
– Vão lá andando, vão lá andando, que eu não me demoro; esqueceram-me os charutos.
Não voltou, está bem de ver, e no outro dia, quando lhe contaram o succedido, ameaçou o céu e a terra, espumando como um javali ferido.
– Se lá estivesse, rachava-os.
E pregou tamanho murro no cinzeiro de barro, que o fez em boccadinhos.
Hontem o sr. Marquez de Soveral teve com El-Rei uma conferencia de duas horas.
– Franqueza, franquezinha, ó coiso, essa historia da intervenção…
– Era pela certa. Hoje a politica é só de interesses, quem governa é a finança.
– Bem sei, governa a finança; mas olha que isso de intervir sem mais nem menos em negocios por assim dizer caseiros…
– Peço perdão; mas não se trata d'um negocio caseiro, nem mesmo d'um negocio exclusivamente nacional.
– Hom'essa! Queres então dizer…
– Quero dizer que em torno d'este negocio se formou uma atmosphera de interesses internacionaes…
– Olha que não tens publico, e essas lerias, cá para mim…
– Cumpro o dever que me impõe a minha posição, e testemunho assim, dizendo a verdade inteira, sem restricções, a minha sympathia pessoal…
– Sim, senhor, és um artista. Vocês, os diplomatas, são como os homens de theatro – mesmo quando estão fóra do palco, representam.
– Julgava-me com direito a maior consideração da parte…
– Tambem eu julgava que me tivesses na conta de menos tolo. Não me conheces d'hoje nem d'hontem, para saberes que ninguem me faz o ninho atraz da orelha.
– O que? Pois…
– Qual historia!.. Acreditei todas as lerias que me impingiste, com uma seriedade á altura das tuas prosapias…
– Não o fiz por menos respeito; o uso das formulas…
– É como o uso do cachimbo – faz a bocca torta. Sempre me sahiste um gajo!..
– Espero que não fique zangado…
– Peior… Essa agora não é de diplomata, é d'alarve.
– Sempre amavel!..
– Sempre justo. Mas falando agora de coisas serias. Tu achas que eu devo…
– Ora essa! Está claro que deve. Da fama ninguem o livra, e as honras sem proveito…
– E quanto achas tu…
– Em negocio de tanta monta, nunca se pede de mais.
– Pois sim, tudo tem limites. Ahi uns duzentos contitos, mais vintem, menos vintem… Que te parece?
– Parece-me