Ao de Leve. Camacho Brito
dito; faço a coisa pelos duzentos.
– É como se lhes désse a elles trezentos e vinte, o que não é barro.
– Quero ser generoso…
– Do pão do nosso compadre…
– Pois sim, canta-lhe d'essas; mas se as coisas se complicam e me põem a viola…
– Qual põem! Chego ás vezes a imaginar que tem medo.
– Tu não me digas isso outra vez, olha que te ponho os queixos á banda. Eu nunca tive medo. Já d'uma vez, n'uma feira, se ergueu tudo contra mim, sem saber quem eu era, e não arredei pé, de cacete em punho, sem ninguem pelo meu lado.
– Bem sei, bem sei; mas se amanhã houvesse qualquer coisa, em menos de nada estavam alli os cavalinhos de pau, e tudo entraria na ordem.
– E se me puzessem a andar antes d'elles cá chegarem?
– Isso então era o diabo. Uma intervenção tardia, depois do facto consumado… Mas é absurdo o suppôr…
– Será absurdo, será; mas, pelo sim pelo não, vou dobrar a parada. Os gajos repontarão?
– Que tem lá que repontem?..
– Está claro. Isto é como dizia o de Braga – ou comem todos, ou ha-de haver moralidade.
S. M. a Rainha, acompanhada da sua dama de serviço, andou hontem distribuindo esmolas no bairro de Alfama, sem se dar a conhecer.
Não queria que a conhecessem.
Abalava de casa, vestida como toda a gente, sem nada que pudesse chamar as attenções de quem quer que fosse. Era uma creatura como qualquer outra, e passava, como qualquer outra, no meio da geral indifferença. Os que a conheciam cumprimentavam-na – bons dias, minha senhora! – e os que a não conheciam nem sequer davam por ella. O passo meudinho, muito apressado, como quem marcha para um certo fito, sem se importar com o resto. Entrava aqui, entrava além, fazia o bem que podia, e nem esperava que lhe agradecessem os miseraveis a quem extendia a mão, deixando cahir uma esmola. Como não se sabia quem fosse, chamavam-lhe a Caridade. Envelheceu muito, como toda a gente que teima em viver e morreu um dia, encarquilhada e secca, como a maior parte das velhas. Era a Caridade Evangelica.
Tempos depois, nos mesmos bairros pobres entrou de apparecer uma creatura exotica, dando nas vistas de toda a gente, obrigando a parar quem passava, para a fixar com attenção. O passo largo, muito lento, como quem não tem pressa, e que quer por força dar nas vistas. Entrava aqui, entrava além, como quem passeia um reclame, e gostava que lhe enchessem as mãos de lagrimas agradecidas os miseraveis a quem dava esmola. Como não se sabia quem fosse, n'um dia que ella passava, o passo largo, muito lento, quasi rythmico, dois miseraveis que a viam passar, como quem passeia um reclame:
– É a Dona Caridade?
– Não; é a Exploração da Miseria.
O Principe Real faz immensos progressos nos seus estudos, causando a admiração dos seus professores.
Era um prodigio, o garoto.
Contava a parteira que elle olhára para traz, quando nasceu piscando um pouco os olhitos ramellosos, como quem pretende ver melhor. Aos tres mezes, já tocava com os deditos côr de rosa nos bicos, pouco salientes, dos peitos da ama, pondo-os em erecção, para mammar melhor. Viam todos que era um pequeno muito talentoso, e um boccadinho brejeirote. Aos noves mezes dizia – bolas! – e foi essa a sua primeira palavra. Comia de tudo, antes de fazer o anno, e larachava com os creados finos, como se fosse uma pessoa grande. Era um prodigio, o demonio do garoto, d'uma precocidade verdadeiramente excepcional. Um familiar da casa perguntava d'uma vez ao medico, a proposito do fedelho —Naturalmente, um genio, doutor? E o doutor, encolhendo os hombros em ar de duvida —Naturalmente um idiota!
Aos cinco annos já sabia tudo – quantas pernas tem um cão, quantas orelhas tem um burro, quantos rabos tem um gato. Era prodigioso, e cada dia que passava como que accrescia de muitos metros aquelle talento incommensuravel. Aos nove annos era um geometra como Euclides, era um historiador como Tacito, era um philosopho como Platão, era um pintor como Raphael, era um poeta como Camões, um romancista como Balzac, um cabo de guerra como Napoleão, um estadista como o sr. Lapin. A tal ponto lhe cresceu o genio, que já não havia espaço para o conter, a dentro das fronteiras nacionaes.
Foi então que se reconheceu a necessidade de o mandar para longe, onde fossem mais largos os horizontes, que os genios, como os gazes quando os comprimem além d'um certo grau, são eminentemente explosivos.
E porque era ainda muito novinho, sem experiencia do mundo, apezar do seu immenso talento, foi a familia com elle, e por lá ficaram todos – para bem de todos nós.
«É melhor tratar d'outro oficio. O jornal ha de morrer á falta de leitores, porque você terá geito para tudo, menos para jornalista.»
Oh! la pauvre bête!..
Era na verdade, um animal perfeito. De côr acastanhada, a anca alta, largo dos peitos, uma estrella branca na testa, talvez demasiadamente sellado, a perna delgada e nervosa, a cauda farta e comprida, era um burro que fazia parar quem passava, admirando-o, e succedeu a mais de uma beata, ferida de tamanha belleza e correcção, estacar no caminho das suas devoções, e não poder reprimir nas arcas santas do peito esta exclamação blasphema: —Benza-o Deus, como é bonito!..
Procopio então passava horas no enlevo do seu burro, afagando-lhe o focinho e alisando-lhe o pello, não consentindo que sobre elle poisasse uma mosca, ou lhe manchasse a pelle acastanhada um grãosinho de poeira. Era uma especie de burrolatria, um culto religioso que lhe enchia a alma, dando-lhe todas as satisfações espirituaes que resultam para um crente da adoração do seu fetiche. E porque se lhe afigurasse que o burro não era, como os outros burros, uma simples cavalgadura, desatou a alimental-o com o melhor da sua mesa, dando todas as coisas boas e raras que encontrava na sua despensa ou se confeccionavam na sua cozinha. Mas nem o burro lhe pegava nos acepipes, nem ao menos se mostrava agradecido aos seus disvelos e blandicias. Procopio lamentava-se da sua má sorte, chorava a sua desdita, sempre amigo do seu burro, sempre idolatra do seu idolo, sempre adorando o seu fetiche. E como quer que um dia, desabafando n'um peito amigo, se queixasse da ingratidão dos burros, vae o outro, grande philosopho, com larga experiencia da vida, aconselha-o assim:
– A culpa é tua, Procopio, e de mais ninguem. O burro não foi feito para comer á tua mesa, como tu não foste feito para comer á mangedoura. Queres vel-o gordo, alegre, contente, a lamber-te as mãos reconhecido?
E como Procopio estendesse o pescoço, a beber-lhe as palavras.
– Dá-lhe palha, Procopio amigo…
S. M. a Rainha visitou hontem o Hospital de S. José.
Estava perdida…
Começava a soffrer do peito, havia annos, e como precisava de trabalhar sempre, trabalhar sem descanço, para não vir a fome juntar-se á doença encurtando-lhe a vida, o mal foi augmentando constantemente, aquelle terreno sendo proprio para aquella vegetação, e as circumstancias ajudando como n'um bom anno agricola. Que era uma constipação, tinha dito o medico do monte-pio, n'uma visita em automovel, a trinta… réis a consulta. O certo é que as dores augmentavam-lhe, como se tivesse o peito mettido n'uma prensa; a tosse era funda, como se lhe viesse do mais intimo dos pulmões; manchas de febre punham-lhe nodoas vermelhas na cera do rosto emmagrecido, e sentia o sangue subir-lhe á bocca, em golfadas, que a muito custo reprimia. Despediram-n'a da fabrica, incapaz de trabalhar, e como recuasse perante a morte, uma noite, a olhar as aguas do rio, foi á consulta no hospital, e ficou na enfermaria. Estava tisica.
Ninguem a visitava, porque não tinha ninguem, e como fosse naturalmente pouco communicativa, passava os dias e as noites a sentir-se morrer aos boccados, amaldiçoando a sorte que a fizera pobre, e attribuindo á miseria o descalabro da sua vida. Por maneira que naquelle dia, á hora do silencio, quando acordou do