A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio
mulher de não sei que diga, olha que a paciencia um dia acaba-se, mulher! Isto não pode continuar assim, mulher! Eu não me casei para que tu me andes a ganhar indulgencias na igreja, mulher!.. Isto são preparos, mulher?.. Um homem chega a casa e acha o caldo por fazer, porque a senhora sua esposa deu em ouvir nove missas por dia e uma duzia de novenas!
– Cala-te, cala-te, – retorquiu azedamente a devota metade do Zé P'reira – cala-te para ahi, desalmado. Excommungado seja o mafarrico, que assim me quer attentar logo que entro em casa! Olha lá que não morresses de fome! Estás mal acostumado. Louvado seja Deus! Já não ha quem queira soffrer n'este mundo mortificações! cuidas que não tens de soffrer as do purgatorio? E Deus nos queira dar só o purgatorio e livrar-nos das penas do inferno. Que muito mal fazemos por lhe merecer misericordia! Ora que não ha de uma pessoa poder ter as suas devoções, que não venha encontrar lamurias em casa! Ó minha rica Mãe do céo, seja para desconto dos meus peccados! Sume-te, inimigo mau! E eu que deixei de rezar oito estações, que prometti á Senhora da Rocha, e vae… Ora digam como ha de esta gente cumprir os jejuns que manda a santa madre igreja, se, por duas horas de espera, já se choram todos! Bemdito e louvado seja o sacratissimo coração de Maria! Ó homem de Deus, e então aquelles santos eremitas, que viviam no deserto de raizes e de agua das fontes…
– Que lhes prestasse. Haviam de andar muito gordos. Eu queria-os vêr com uma enxada a trabalhar todo o dia no campo, e que lhes dessem depois raizes para roer, a vêr se gostavam. Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! Mulher, a religião manda que olhemos pelo nosso cadaver. É má christã a mulher que deixa o seu marido na penuria. Isto é que os padres deviam ensinar. Vae-lhes lá perguntar se, quando chegam a casa, não teem a sôpa e o toucinho á espera d'elles?
– Cala-te, tentador, que me andas a tentar, cala-te, tem vergonha n'essa cara. Olha agora! Eu queria vêr-te com o trabalho do sr. padre Domingos. Coitadinho! desde as cinco horas da manhã até agora a confessar!
– Confessar é parolar; ora adeus!
– Tu estás doido, alma perdida?!
– E cuidas que elle não leva marmelada nos bolsos?
– Ó chagas do seraphico S. Francisco, ainda mais terei de ouvir?!
– Mulher, deixemo-nos de historias; com jejuns ninguem engorda. Só os santos… de pau.
– Vamos, vamos – disse o Herodes, intervindo. – Não vale zangarem-se por causa d'isso. A minha pequena deve ter o caldo quasi feito. Comam-o em santa paz e deixem-se de testilhas, que não é bonito; e muito menos entre marido e mulher. Você, compadre, tambem tem culpas em cartorio; vamos lá. Ha por ahi umas certas capellas, onde passa tambem bastante tempo em devoção; emquanto á comadre, acredite o que lhe digo: a palavra de Deus não é tão difficil, que uma pessoa precise de estar tanto tempo a ouvil-a explicar. Eu cá penso que, fazendo a gente aquillo que lhe diz o coração, e que não sente nenhuma aquella em fazer, vae por caminho direito. E mais vale fazer o que Deus manda, do que levar a vida a pedir perdão por o não ter feito. E tambem não é bonito estarem agora as mulheres, horas e horas, pegadas ao confessionario, como lapas nos rochedos, nem…
– Compadre! – atalhou escandalisada a sr.a Catharina – compadre! É essa a educação que dá á sua filha? São coisas que se digam deante de uma creança de doze annos? Ande lá, ande lá… Ora Deus queira que lhe não encontre ainda o pago. Era bem melhor que lhe ensinasse, ou mandasse ensinar, a doutrina; que é mesmo uma vergonha o pouco que sabe d'ella.
– Bem tenho eu tempo para isso. A minha Ermelinda não deixa passar pobre á porta, a quem não dê esmola; creança que não afague; velho ou velha, que não corteje; reza todas as manhãs a oração, que a mãe lhe ensinou, o Padre-Nosso e a Ave-Maria, onde se diz tudo o que se deve dizer a Deus; de dia trabalha, como filha de pobre que é, e mulher de casa que ha de ser… O Senhor me perdôe, se mais é preciso ainda, que mais não sei eu ensinar-lhe.
– Não tenha soberbas, compadre, não tenha soberbas! E cautela com o mimo que dá á pequena, que é o que perde muitas almas.
– Que mimo, que mimo? Logo eu com este genio de repentes é que hei de dar mimo a esta pobre creança, que nem o da mãe conheceu!
– Ora diga, compadre, acha que é muito bem feito, da sua parte, deixar andar a rapariga com esses cabellos soltos? Não sabe que o demonio… cruzes! arma com elles laços ás almas das creaturas?
– Fracas prisões são as do diabo, se as forja só de cabellos!.. Então, por causa das tentações é que a comadre rapou os seus? Ah! ah! Tem coisas! É teima velha! Eu já lhe disse, comadre: Deus, que deu á pequena esses cabellos tão bonitos, é porque lh'os quiz dar. Se quizer, que lh'os tire, eu é que não.
– Deus cerca-nos de tentações, para que nós as vençamos.
– Forte tentação venceu a comadre! aposto que os não cortaria assim, se os tivesse como os da minha Ermelinda, hein! Cortar os cabellos á minha filha, eu?! fazer d'aquella cabeça de cherubim uma d'essas cabeças tosquiadas, que por ahi andam!
– Talvez ainda se arrependa!
– Deixe lá, comadre. O que eu vejo é que, junto de Deus e da Virgem, se pintam anjos, como a minha pequena, e não figuras… respeitaveis, como a da comadre; ora então…
A beata, apesar de trazer sempre na memoria o Vanitas vanitatum do Ecclesiastes, não foi inteiramente insensivel ao remoque do compadre. Azedou-se-lhe o humor, e, voltando-se para Ermelinda, disse-lhe como para descarregar sobre ella a má vontade com que estava ao pae:
– Sae-te p'ra lá. O senhor meu homem tinha muita pressa de jantar! Deixar assim uma creança fazer uma fogueira d'estas! Nem para assar um boi! É preciso não ter consciencia.
E tirou do lume um pequeno cavaco, para justificar o dicto.
Zé P'reira monologava ainda. Augusto continuava examinando o livro recebido.
Ermelinda afastou-se do lar com timidez. No animo d'aquella creança, que era de uma organisação nervosa, excepcional na aldeia, exercia a beata uma especie de fascinação, um mixto de respeito e de terror, capaz de dissipar todos os risos dos seus labios infantis. Era outra na presença da madrinha, fitava-lhe nas faces descarnadas e macilentas os bellos olhos negros; seguia-lhe, quasi assustada, o movimento dos labios austeramente contrahidos; tremia ao escutar-lhe a voz aguda e penetrante, falando nas penas do inferno; chorava á menor reprehensão que d'ella recebia, e comtudo amava-a, amava-a, porque Ermelinda na sua candura de creança, suppunha a madrinha uma santa; avultavam-lhe, como virtudes beatificantes, os defeitos da devota velha; a innocente julgava-se uma grande peccadora quando, depois de ter na mente aquelle perfeito typo, voltava a olhar para si, para o fundo da sua consciencia; e que negros e hediondos peccados lá encontrava! Uma pequena mentira que dissera; um domingo em que faltou á missa; um juramento que, sem o sentir, lhe saira da bôca; um jejum que não guardára, e outros crimes da mesma fôrça. A amedrontada creança chegava a receiar pela salvação da alma.
É sempre funesta a influencia que exercem sobre a infancia os caracteres como os da beata.
O Herodes percebeu a impressão sob a qual estava a filha e acudiu-lhe.
– Toma lá, Ermelinda – disse elle, tirando da mala uma pequena medalha com um retrato. – É um presente do nosso amigo Angelo para nós, ou antes, para ti…
Ermelinda pegou no retrato com não reprimido alvoroço. Era outra vez a creança.
A madrinha lançou para a medalha um olhar obliquo e reconheceu o retrato.
– Em nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo! – rompeu ella, com um espanto exaggerado. – Este homem não tem a cabeça no seu logar, por mais que me digam! Elle quer perder a filha de certo! A fazer a cabeça doida a uma creança!
O Herodes, ouvindo estas palavras, pousou com impeto a mala no chão, e com os olhos chammejantes e as faces injectadas, vociferou, cedendo o campo á cólera, que se lhe accumulou no seio:
– Com seiscentos milhões de diabos! Você que está ahi a dizer, mulher?