A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio

A Morgadinha dos Cannaviaes - Dinis Júlio


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declarou que não abraçaria a vida ecclesiastica sem que se sentisse com a coragem precisa para cumprir todos os deveres que ella lhe impunha; que era precisa uma grande abnegação, e que elle, depois da morte de sua mãe, não tinha a certeza de a conseguir. Nos interesses não pensava, e se pensasse, seria isso a primeira prova de não estar preparado para a missão de que se queria encarregar.

      Quando alguem abraça com lealdade e franqueza uma boa causa, difficilmente é vencido. O conselheiro, costumado a não recuar nas mais acerbas luctas do parlamento, calou-se dentro em pouco ás objecções d'aquella creança. Como que teve remorsos de tentar sequer desvanecer as illusões a que o via abraçado, – illusões pelo menos as suppunha elle; parecia-lhe uma obra satanica envenenar com um sorriso aquelle ideal, em que vivia. – Respeitou-o e calou-se.

      – Alguma creancice amorosa dos quinze annos – pensou para si. Deixemos ao tempo convencel-o. Não me encarregarei eu d'esse papel, que é pouco sympathico. Quem me restituira aquellas canduras! Teria alcançado menos no mundo, mas talvez tivesse gosado mais… ou melhor…

      O conselheiro cedeu apparentemente, esperando que a reflexão modificaria, mais tarde, as ideias do rapaz.

      Exigiu d'elle que a ninguem annunciasse as tenções, em que estava de não se ordenar, pelo menos emquanto não passasse mais tempo sobre aquella resolução.

      E uma vez que ficava na terra, pediu-lhe o conselheiro que se encarregasse da primeira educação de Angelo, então de nove annos; pois mais confiava para isso em Augusto, do que no professor official.

      Augusto acceitou com prazer a incumbencia, que, sobre adequada aos seus gôstos, lhe abria uma carreira, que elle já imaginára adoptar.

      De então nasceu uma intima amizade entre Angelo e Augusto. Foram rapidos os progressos do discipulo, e não menos reaes as vantagens que ao mestre resultaram do ensino, que lhe desenvolvia cada vez mais a intelligencia. – O conselheiro tinha motivos para estar satisfeito da escolha.

      Ao fim de um anno as repugnancias de Augusto em acceitar o legado eram as mesmas; o egoismo paternal do conselheiro não o deixou ser muito ardente a combatel-as. – Espaçou-se mais uma vez a decisão.

      Outras lições appareceram a Augusto, as quaes elle acolheu com gôsto; o mestre-escola reclamava tambem muitas vezes o seu auxilio; compadecido da sua velhice, Augusto nunca lh'o recusou.

      O velho acabou por declinar n'elle o serviço todo, sem que Augusto consentisse em receber por isso o menor estipendio.

      O publico não se cançava de perguntar quando seria que o rapaz principiaria os seus estudos em Lisboa e por que o não fazia já. Como não obtivesse resposta, commentava o facto, como costuma commentar todos os que não entende.

      No entretanto a educação de Augusto não ficára estacionaria. Com grandes sacrificios a continuára elle; e n'um êrmo, como era aquella aldeia, tinha muito de milagre o que fazia.

      O latim de mestre Bento já mal satisfazia ás impaciencias do espirito d'este discipulo enthusiasta; e não era raro que a intelligencia de Augusto visse mais fundo nos textos, do que a experiencia do mestre.

      O acaso favoreceu os desejos do estudante.

      N'uma freguezia proxima estava, como abbade, um doutor em theologia, homem de solido saber e de reputação extensa.

      Um dia em que, por convite do seu collega, viera assistir e prégar na festa do orago da aldeia, o padre encontrou-se com Augusto na sacristia e, conversando-o, admirou-lhe a penetração, captivou-se da sua modestia e lamentou não estar mais perto d'elle, porque o auxiliaria, como pudésse, nos estudos.

      Augusto perguntou-lhe se era sincera aquella vontade; affirmando-lhe o padre que sim, respondeu que não seria então estorvo a distancia, porque elle a venceria.

      E d'ahi em deante, duas vezes por semana, ás quintas feiras e domingos, franqueava legua e meia dos mais escabrosos caminhos, para ir ouvir as lições do erudito abbade. Assim se aperfeiçoou na latinidade, cultivou a philosophia e adquiriu o gôsto pelos nossos velhos prosadores e poetas. Vinha de lá carregado de livros para ler durante a semana. Toda a bibliotheca do padre lhe passou pelas mãos.

      Era porém o theologo classico exclusivo e nada visto em linguas e litteraturas modernas.

      A sorte não recusou ainda a Augusto um novo mestre.

      Entre os muitos estudos de estradas, de que os governos em Portugal fazem preceder, vinte annos antes, a construcção definitiva de uma só, que de ordinario sae sempre como se não fôsse tão estudada, um houve que levou á aldeia, em que eu e o leitor nos achamos, um engenheiro que ahi fez quartel e centro de operações, durante tres mezes inteiros.

      A casa em que elle se alojou ficava proxima da de Augusto. Cêdo travaram conhecimento os dois. O engenheiro o menos que possuia eram livros de mathematica; mas, emquanto a litteratura moderna, trazia nas malas e bahús uma excellente provisão.

      Não tendo que fazer ás noites, entreteve-se a ensinar o francez a Augusto e a ler-lhe os livros da sua bibliotheca portatil. Voavam as horas a Augusto n'aquelles serões; n'elles aprendeu todos os nomes da nossa litteratura moderna, bem como os principaes da de França e de Inglaterra.

      Quando o engenheiro partiu da aldeia já Augusto sabia o francez bastante para se aperfeiçoar por si; este amigo deixou-lhe em lembrança grande parte dos seus livros, que Augusto releu muitas vezes.

      Attingiu finalmente Angelo a idade de precisar do collegio. O conselheiro, ao leval-o comsigo, insistiu mais uma vez com Augusto para que viesse tambem e acceitasse o legado da morgada. Foi em vão, encontrou-o ainda inabalavel.

      E d'esta vez fez publica a sua desistencia, e o ambicionado patrimonio foi concedido a outro.

      Mezes depois morria o velho mestre-escola da aldeia.

      Augusto escreveu ao conselheiro, declarando-lhe que pretendia aquelle logar, que já havia muito tempo servia, e pedindo-lhe para que se interessasse por que elle o obtivesse. O conselheiro quiz tirar-lhe da ideia tal projecto; escreveu-lhe que, na idade em que estava Augusto, o não ter ambições era indicio de uma profunda doença moral; que a posição a que elle aspirava, equivalia a uma sepultura estreita a que se acolhesse vivo. Augusto persistiu porém no intento; o conselheiro empenhou-se por elle em Lisboa. Conseguiu que uma portaria, meio pelo qual se faz em Portugal tudo que é contra lei expressa, o dispensasse da idade que ainda não tinha, pois mal completára dezenove annos, e Augusto foi por conseguinte admittido a concurso para tão pouco disputado logar e provido n'elle por tres annos. O conselheiro, a quem não fôra impossivel obter-lhe despacho vitalicio, quiz vêr assim se, no fim de tres annos, o obrigava a abandonar tão laboriosa e mal recompensada carreira, e de proposito o fez despachar temporariamente. Comquanto o legado da morgada tivesse tido já outra applicação, o conselheiro não hesitaria em proteger, em qualquer carreira, o mestre de seu filho.

      Mas ao fim de tres annos, Augusto, apesar de por experiencia conhecer já os espinhos da profissão, apresentou-se novamente ao concurso para obter novo despacho. Na época em que abrimos esta narração, voltára Augusto de pouco de ultimar a nova prova; e estava pendente ainda a decisão do ministerio competente. D'esta vez tivera um competidor, homem muito protegido por influencias da localidade, as quaes ainda não tinham podido vencer a do conselheiro, que pugnava por Augusto.

      Desde que fôra para Lisboa, Angelo não se esquecera de escrever amiudadas vezes a Augusto, contando-lhe dos seus estudos, e descrevendo-lhe a sua vida na capital; e quando vinha a férias, procurava transmittir ao que fôra seu mestre a sciencia que durante o anno adquiríra.

      Foi assim que Augusto principiou a estudar a lingua ingleza, a geographia e a historia.

      Recebido o primeiro impulso, a sua intelligencia e applicação faziam o resto.

      Um homem que havia na aldeia e com quem cêdo teremos de travar conhecimento, um velho herbanario, para alguns um sabio, para outros um louco, para todos um homem honrado, concorreu tambem, com o seu contingente, para a educação de Augusto.

      De tempos a tempos, este velho mysterioso apresentava-se em casa d'elle com um pacote de livros debaixo do braço e, sorrindo, pousava-lh'os em cima da mesa.

      Eram


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