A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio

A Morgadinha dos Cannaviaes - Dinis Júlio


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lecciona ainda as pequenas do brazileiro? – perguntou Magdalena.

      – Ainda, sim, minha senhora.

      – E como vão essas mulatinhas?

      Augusto encolheu os hombros, sorrindo; gesto que não devia lisonjear a vaidade do sobredicto brazileiro, se tomasse a peito os dotes intellectuaes das referidas mulatinhas.

      Passados segundos, Augusto retirou-se, apertando a mão a Magdalena que familiarmente lh'a estendeu, e a Henrique, que a imitou.

      – Ia apostar que vae alli uma intelligencia – disse Henrique ao vêl-o sair – algum d'esses grandes espiritos, que vivem e morrem ignorados e improductivos, porque os não aquece o sol do favor publico, nem os bafeja a aura da moda caprichosa. É terra de maravilhas esta, ao que estou vendo.

      – É um rapaz intelligente, é – disse a morgadinha – e uma alma generosa. Desde tenra idade costumou-se a trabalhar. Não tem familia. O pae foi um pobre e honrado advogado de um logar perto d'aqui, que morreu quasi na miseria, deixando-o por educar. A mãe, que era d'estes sitios, para ahi veio, depois que viuvou. Elle tem sido, pode dizer-se, mestre de si mesmo. Dirigiu os primeiros estudos de Angelo e hoje é o seu melhor amigo. A morgada, minha madrinha, legou-lhe um patrimonio para elle se ordenar: não quiz, e preferiu ser mestre-escola. Meu pae, que lhe reconhecia intelligencia para mais, tentou dissuadil-o d'isso, mas nada conseguiu. Não ha quem o arranque d'estes sitios.

      – Prende-o talvez alguma paixão?

      – Não sei. É certo que é um professor modelo. O seu primeiro despacho foi temporario; agora, porém, espera meu pae fazel-o effectivo; para o que já elle fez novo concurso. Já vê que ambições são as d'este rapaz.

      – Na verdade! com muito menos fundamentos ha quem aspire a ser ministro. Mas com certeza o coração entra como elemento no problema d'esse caracter.

      – Mas ainda agora reparo! – exclamou a morgadinha – eu esquecida a conversar, e sem avisar a minha tia e Christina da sua chegada! Não o fiz logo, porque as sabia occupadas em umas longas novenas, em que andam; mas agora é tempo. Vae, Marianna, e tu, Eduardo; ide ambos dizer-lhes que está aqui o… o primo Henrique de Souzellas.

      Marianna e o irmão sairam a correr.

      – Vae conhecer duas boas almas – disse Magdalena, voltando-se para Henrique – minha tia é uma santa senhora, cujo peor defeito é suppôr-se victima dos criados; e Christina… Christina é um anjo.

      V

      Henrique de Souzellas sentia-se cada vez mais penetrado da sympathia, que logo á primeira vista, aquella mulher lhe despertára.

      Havia na morgadinha um mixto de candura e de ironia, certa delicada reserva fluctuando, como uma sombra diaphana, na conversa familiar, a que tão espontaneamente se dava; um visivel conhecimento dos usos e etiquetas sociaes, e ao mesmo tempo uma coragem para cortar por elles, como quem se sentia sobranceira a toda a ousadia, inaccessivel ás suspeitas dos mais atrevidos: havia tantos enygmas n'aquella sympathica indole feminina, que poucos seriam impassiveis deante d'ella.

      A pensar n'isto se ficou Henrique de Souzellas, calado, immovel, absorto, seguindo com os olhos os movimentos de Magdalena, que, sem o menor constrangimento, proseguia nas suas occupações domesticas.

      Ouviram-se finalmente passos e vozes de differentes timbres na sala immediata.

      – Ellas ahi veem – disse a morgadinha.

      De feito, precedidas por Marianna e Eduardo, entraram na sala D. Victoria e Christina.

      A mãe vinha dizendo:

      – É o que eu digo… Não que vocês não querem crer! Ora vejam se isto se atura… se isto não é para metter uma pessoa no inferno!.. Não tem que vêr!.. Não ha ninguem que mais dinheiro gaste com criados e que seja tão mal servida como eu!.. Eu só queria saber o que fazem os criados d'esta casa? Sim, só queria que me dissessem o que elles fazem, esse bando de mandriões!.. Elle é o Torquato, elle é o Luiz, elle é o Damião, elle é a Ermelinda, elle é a Rosa, elle é a Violante… e não havia um só que me viesse dizer que tinha chegado o primo! É forte coisa!.. Compromettem uma pessoa! Então como está? – accrescentou ella, mudando de tom para cumprimentar Henrique, a quem estendeu a mão.

      Magdalena, ao ouvil-a, tinha já trocado com este um olhar malicioso.

      Henrique correspondeu delicadamente á saudação das senhoras e procurou justificar os criados.

      – Não m'os desculpe, – atalhou D. Victoria, elevando outra vez o tom de voz – aquillo é de proposito para fazerem ficar mal uma pessoa; ninguem me tira isto da cabeça… Aquillo é de proposito!

      – Mas a mamã não vê que as criadas estavam comnosco á novena? – lembrou timidamente Christina.

      – Pois que não estivessem. Quem tem serviço a fazer não pode ouvir novenas.

      – Mas se a mamã é que as mandou!

      – Pois sim… pois sim… mas… mas ellas é que me deviam dizer que tinham que fazer. Então eu é que lhes hei de estar a lembrar as suas obrigações? Não me faltava mais nada! Ora tens coisas, menina! Mas então vamos a saber, primo Henrique, fez bem a sua jornada?

      Henrique principiou a falar para desvanecer a irritação de D. Victoria.

      Como nós já sabemos dos pormenores da tal jornada, aproveitaremos a occasião para dizer duas palavras a respeito das novas personagens, que estão em scena.

      D. Victoria, havendo attingido já a idade respeitavel dos quarenta e tantos annos, dispensa-nos grandes longuras e esmeros de descripção. Basta que o leitor saiba que era uma senhora nutrida, bondosa no fundo, e que sabia muito bem trazer os vestidos escuros da sua viuvez. Impertinente com os criados, doida pelos filhos e sobrinhos, muito sujeita a esquecimentos, e confundindo-se facilmente sempre que tentava forçar o espirito a abraçar alguma ideia mais complexa; mãos rotas com a pobreza; intolerante, em theoria, com os ladrões e malfeitores, porém felizes d'elles se d'aquellas mãos lhes dependesse a condemnação; eis o que era D. Victoria. Christina, porém, tinha dezenove annos; e esta idade gosa de privilegios, que eu não posso infringir. O leitor não me perdoaria se me visse passar estouvadamente por deante da prima de Magdalena, sem um olhar de homenagem á sua juventude e ao seu typo feminino. Reparemos pois.

      Christina era mais bonita do que bella. Não havia n'aquelle rosto uma só feição, que não fôsse correcta e delicada. Tez alva e finissima; olhos meigos e quebrando-se com suavidade infantil; bôca, d'onde parecia sempre prestes a sair um afago ou uma consolação; voz, que da muita piedade d'aquelle bom coração, tirava ás vezes modulações commoventes; n'uma palavra, uma figura de cherubim, como as sonharam os mais inspirados artistas, cuja mão representou na téla os augustos mysterios do christianismo, tal era a primogenita de D. Victoria. Mas não procurassem n'ella alguns d'aquelles attractivos, que fixam de repente e como por magnifico influxo, a attenção dos olhos, uma d'essas particularidades physionomicas, pelas quaes a natureza, destruindo com arrojo feliz a geral harmonia de um semblante, consegue tornal-o mais fascinador; temperavam-se alli tão completamente todas as feições, que a attenção não se sentia obrigada a passar do conjuncto d'ellas, o que lhes diminuia muito a intensidade. É o grande senão dos rostos harmonicamente perfeitos.

      Concordava-se em que Christina era galante, ninguem lhe negaria sympathias; mas o pensamento na ausencia d'ella, não se sentia dominado por a sua imagem: perdia-a até n'um vago, quando pretendia fixal-a: eram suaves de mais as inflexões d'aquelles contornos, brandas as tintas que lhes davam relevo, para que a memoria conseguisse reproduzir facilmente o typo angelico, de que lhe ficára uma agradavel, mas vaga impressão.

      Por um homem, em quem predominasse a razão, Christina poderia vir a ser adorada; mas nas imaginações ardentes, nos corações inflammaveis, difficil lhe seria produzir alguma impressão duradoura.

      Para bem se comprehender a belleza de Christina, era preciso sondar-lhe primeiro o coração, apreciar todo o thesouro de sentimentos que alli se continha; então descobrir-se-lhe-hia


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