A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio

A Morgadinha dos Cannaviaes - Dinis Júlio


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aqui algum tempo comnosco, me trouxe uma boneca, realmente bonita; uma maravilha de Nuremberg. Nos primeiros dias não me fartava de a vêr, de a beijar, até commigo a deitava. Oito dias depois succedia o que era de esperar, já nem d'ella sabia. Meu pae notou-o. – Então, Lena – aqui todos me chamam assim – já não gostas da tua boneca? – Disse-lhe eu: Gosto, mas… – Bem sei, já fizeste tudo o que tinhas a fazer por ella, e como, pela sua parte ella nada faz por ti, enfastias-te, canças-te de conceber, a cada momento, brinquedos novos. Tens razão; onze annos já não é idade em que o interesse se sustente com tão pouco, é necessario mais. Ora dize-me, Lena, – continuou elle – se eu te mandasse vir uma boneca que movesse os braços e os olhos, que te sorrisse, que chorasse tambem, que te beijasse até… – Pois ha bonecas assim? – perguntei eu, admirada. – E desejaval-a? – Oh! se a houvesse!.. – Trago-t'a ámanhã. Não dormi aquella noite a pensar na boneca. No dia seguinte apresentou-me meu pae uma creança de um anno, orphã de uma pobre familia, que uma epidemia extinguira, e disse-me: – Ahi tens a boneca que te prometti, Lena; vou confial-a aos teus onze annos. Veremos se tens juizo para brincares com ella. É assim que eu quero que aprendas os deveres de mãe, que é a verdadeira sciencia apropriada a mulheres. E o que é certo é que eu, dissipado o desgosto dos primeiros momentos, porque o tive, confesso, costumei-me a querer áquella pobre creança, fui avara nas suas caricias, troquei por ella todos os meus brinquedos, e senti-lhe do coração a morte, quando, um anno depois, ella me expirou nos braços. Quando fui para Lisboa, já ia educada para amar creanças.

      Magdalena contára tudo isto naturalmente, sem a menor affectação, sem deixar até de attender aos primos, o que augmentava o interesse com que a escutava Henrique.

      – E assim fica sabendo quem é a morgadinha dos Cannaviaes – concluiu ella, desatando o babeiro das creanças, que tinham terminado o lunch.

      – É verdade, mas d'onde lhe vem este titulo singular, prima Magdalena? – perguntou Henrique, tomando ao collo uma das creanças, que a morgadinha pousou no chão.

      – É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d'ahi começaram a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo quanto possuia; n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que sou proprietaria ainda. Foi uma como confi – É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d'ahi começaram a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo quanto possuia; n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que sou proprietaria ainda. Foi uma como confirmação do titulo, que já desde creança me tinham dado; e para todos sou aqui a morgadinha, titulo na verdade pouco elegante e que tão mau conceito fez conceber ao primo Henrique da possuidora d'elle.

      – Retracto-me, prima Magdalena; agora que sei a pessoa a quem elle pertence, parece-me outro. Acho-o bonito, gracioso…

      – Vamos, vamos. Confesse que o titulo não é dos mais romanticos e que, de boa vontade, escreveria outro nome debaixo do desenho de phantasia que ahi fez, da mesma maneira que deu á humilde e fiel jumenta, que eu montava ha pouco, a conformação e orelhas elegantes de um palafrem, e quasi me transformou em uma amazona ingleza.

      Henrique respondeu, sorrindo:

      – Na impossibilidade de reproduzir as graças naturaes, soccorri-me ao expediente das bellezas de convenção. Confesso o meu deploravel erro.

      – Olhe que não estamos em Lisboa, primo Henrique. Repare para essas arvores e refreie o sestro galanteador, com que está.

      – Por quem é! Não leve o rigor a tal extremo. Tão injusta é comsigo, que se recuse a acceitar, como naturaes e sinceras, as phrases que a sua presença inspira?

      – Ai, meu Deus, como refina! Veja como essa creança, que tem no collo, o está encarando com os olhos espantados. Se ella nunca ouviu falar assim aqui!

      Henrique beijou as faces da creança, movimento em que não ia uma intenção menos lisonjeira do que nas phrases que dissera, porque elle percebia que Magdalena era extremosa pelos seus pequenos primos.

      Abriu-se, n'este meio tempo, a porta da sala, e entrou, saltando, outra creança mais crescida, mas ainda de vestidos curtos, trazendo na mão uma folha de papel.

      – Lena – dizia ella em alta voz. – Olha; queres vêr o que o sr. Augusto só me emendou hoje no thema francez?

      Chegando ao meio da sala, parou a olhar com estranheza para Henrique.

      – É o sr. Henrique de Souzellas – disse Magdalena. – O hospede da tia Dorothéa. Esta é Marianna, outra de minhas primas – accrescentou, voltando-se para Henrique. – Já vê que não faltam creanças n'esta casa; e ainda ha mais. É o que lhe dá o ar alegre que tem.

      Marianna cumprimentou Henrique e não se constrangeu por mais tempo; mostrando á prima a composição que o mestre lhe emendára, disse:

      – Ora vê que não tive muitos erros.

      Magdalena sorria, examinando o thema.

      Henrique ia a fazer não sei que pergunta a Marianna, quando á mesma porta, por onde ella entrára, appareceu o mestre, de quem se falava.

      Augusto, que assim se chamava o recem-chegado, era um rapaz de pouco mais de vinte annos de idade; de rosto pallido e physionomia intelligente.

      Ninguem adivinharia n'aquelle typo um mestre-escola de aldeia.

      Trajava com simplicidade, porém com asseio e gôsto, e havia em toda a sua figura certo ar de distincção, que feria quem pela primeira vez o visse.

      N'um leve pendor de cabeça, no olhar penetrante e fixo, e nos labios, como habituados a fecharem-se á saida dos pensamentos intimos, lia-se o caracter pouco expansivo d'aquelle adolescente.

      Magdalena dirigiu-lhe a palavra, em tom de manifesta deferencia.

      – Como vão os seus discipulos, sr. Augusto?

      – Optimamente, minha senhora – respondeu o interrogado.

      – O sr. Augusto – disse Magdalena, apresentando-o a Henrique – o primeiro mestre de meu irmão Angelo e hoje mestre de Marianna e Eduardo.

      – Esquece-se, minha senhora, – accrescentou Augusto – que de Angelo sou discipulo tambem, e mais discipulo do que fui mestre.

      – Do que me esqueci, e, a falar a verdade, não devia, foi de que de Angelo é effectivamente mais do que mestre, é amigo; assim como de todos nós. Este senhor – continuou ella, concluindo a apresentação – é o senhor Henrique de Souzellas, que se esperava em Alvapenha; é ainda nosso primo.

      Os dois cortejaram-se com affavel delicadeza.

      – Teve carta de Angelo? – perguntou em seguida a morgadinha.

      – Não recebi ainda o correio de hoje.

      – Nem nós; e é de estranhar que meu pae pelo menos não me escrevesse! Angelo não virá passar a festa comnosco? Pobre rapaz! Parece que renasce quando se vê aqui. É uma perfeita creança então.

      Eduardo, outro primo de Magdalena, que Henrique ainda não vira, entrou n'este momento na sala, trazendo um masso de cartas na mão. Depois de cumprimentar Henrique, a quem Magdalena o apresentou, disse para Augusto:

      – A mamã deu-me essas cartas para o sr. Augusto escolher d'ahi aquellas que eu pudesse ler.

      – Eu verei devagar – disse Augusto, guardando-as n'uma pasta que trazia.

      – Ah! já temos o Eduardo a ler cartas! – disse a morgadinha, afagando o primo.

      – Pelo que vejo – disse


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