A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio
á latinidade que ensinava com a proficiencia, que o leitor pode imaginar, depois do que ouviu.
– Ai, meu caro senhor – continuou o atribulado magister– eu se me vejo um dia livre d'este amaldiçoado latim, faço uma fogueira, na qual me hei de regalar de vêr arder o Tito Livio e os Virgilios todos tres.
É de advertir que mestre Bento falava sempre no plural, ao referir-se a Virgilio.
Quer-me parecer que para este interprete da litteratura latina tinham de facto existido tres Virgilios, provavelmente irmãos, e cada um auctor de cada um dos tres volumes da edição, que lhe servia de texto. Dizia Virgilio 1.º, 2.º e 3.º, como quem se refere aos monarchas homonymos, que succederam n'um mesmo reino.
– Não me salvo se morro mestre de latim – proseguia elle. – Afunda-me no inferno o trambolho da syntaxe.
Ia continuar, quando toda a gente, que Henrique viu fóra da porta, principiou em desordenada azafama a entrar para a loja, que em breve não comportava mais ninguem.
– Ahi vem o homem, sr. Pertunhas; ahi vem. Graças a Deus, que ahi vem! – diziam todos á uma.
O funccionario principiou a impacientar-se.
– Então! então! Por onde ha de elle entrar, fazem favor de me dizer? Saiam, saiam. Não ouvem? Então não fazem caso das minhas ordens? Dêem logar. Não vêem que estão molestando este senhor?
Cada um dos reprehendidos n'estes termos indignava-se, ao vêr que os outros não obedeciam ás ordens, mas, pela sua parte, não cedia um passo, como se lhe valesse algum especial privilegio.
– Saia você, mulher – dizia um.
– E você por que não sae? Olha agora!
– A todos ha de chegar a vez. Descance. Se tiver carta lh'a darão. Lá por estar aqui não é que…
– Pois então saia tambem. Ora essa!
– Ó santinha, não empurre.
– Ó filho, quem é que lhe faz mal?
– Por onde é que se quer metter, homem de Deus?
– Eu não sou menos que os outros.
– Que quereis vós d'aqui, canalhada?
– Não bata, que ninguem lhe tocou, seu velhote.
– Espera que eu te falo.
Estas e analogas vozes abafavam n'um rumor tumultuoso as agudas declamações do «director do correio», o qual obrigou Henrique a passar para dentro da teia, para se salvar das ondas populares.
Henrique estava achando igualmente curiosa a indignação do homem e a alvoroçada anciedade do povo.
Ha de facto poucas scenas tão animadas, como a da chegada do correio e da distribuição das cartas em uma terra pequena. Durante a leitura dos sobrescriptos, feita em voz alta pelo empregado respectivo, um observador, que estude attento as impressões que essa leitura opéra nos semblantes dos que ávidos a escutam, como que vê levantar-se uma ponta de cortina, corrida a occultar-nos as scenas da comedia ou da tragedia da vida de cada um.
Que hora de commoções aquella, em que se abrem as malas, onde veem encerrados porventura os destinos de tantas pobres familias! Quantas vezes verdadeira boceta de Pandora, d'onde se espalham as desgraças e os pezares!
Nas grandes cidades dispersam-se estas commoções; passam-se no recato dos gabinetes de cada um. Lembrem-se porém das vezes, em que teem segurado com mão trémula na correspondencia, que o correio lhes traz; no anciar do coração com que lhe rasgam o sêllo; nas lagrimas ou sorrisos com que lhe interrompem a leitura; no irresistivel movimento de desespero com que a amarrotam depois, ou nas expansões apaixonadas com que beijaram o nome que a subscreve; lembrem-se d'isso, multipliquem depois esses affectos todos, despojem-os das reservas que a etiqueta impõe ás classes mais civilisadas, façam-os manifestarem-se n'um mesmo momento e n'um mesmo logar, e digam se concebem muitas outras scenas, em que mais sentimentos e paixões se agitem em lucta travada.
Chegou emfim o homem das cartas, e a custo conseguiu romper até ao mostrador, onde pousou a mala. O «director», depois de tossir, de assoar-se, de suspirar e de limpar os oculos com umas delongas, que formavam com a anciedade do povo um contraste desesperador, abriu fleugmaticamente o sacco, extrahiu um não muito volumoso masso de cartas, que despejou n'um cesto de vime, e tomou apontamentos.
Era digno do pincel de um artista aquelle grupo de physionomias, que seguiam ávidas todos os movimentos de mestre Bento. Olhos e bôcas abertas, mãos juntas, pescoços estendidos, a cabeça inclinada para receber o menor som, tudo caracterisava profundamente a anciedade que lhes dominava os animos.
Mestre Bento Pertunhas achou a occasião apropriada para dizer a Henrique:
– Pois, senhor, eu nasci para artista. Quasi sem mestre aprendi a tocar trompa e, não é por me gabar, mas prezo-me de tocar com certo mimo e expressão.
Henrique volveu o olhar para o auditorio; apiedou-o a consternação d'aquellas physionomias. Resolveu valer-lhe.
– Tem a bondade de vêr se ha alguma carta para mim?
– Ah! pois já as espera hoje?
– Não é provavel; porém…
Mestre Bento Pertunhas, em vista d'isto, começou em voz lenta e fanhosa a leitura dos sobrescriptos.
Seguiu-se novo e não menos interessante espectaculo.
A cada nome proferido, erguia-se quasi sempre uma voz, ás vezes um grito; estendia-se por cima das cabeças um braço, e, podemos accrescentar ainda que se não visse, alvorotava-se um coração.
Outros, os não nomeados ainda, olhavam com anciedade para o masso, que diminuia, e cada vez mais se lhes assombrava o semblante.
– Luiza Escolastica, do logar dos Cójos – lia mestre Pertunhas.
– Sou eu, senhor, sou eu; ai, o meu rico homem! – exclamou uma mulher joven, apoderando-se ávidamente da carta.
– Joanna Pedrosa, de Serzedo – continuava elle.
– Aqui estou; será do meu Antonio, senhor? – disse uma velha, pobremente vestida.
– Será do seu Antonio, será – respondeu o insensivel funccionario; – o que lhe posso dizer é que traz obreia preta.
A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquellas sinistras palavras. Apanharam-lh'a; e ella, tomando-a, saiu da loja, a chorar lastimosamente.
– Se foi o filho que lhe morreu, não sei o que ha de ser d'ella – disse um dos circumstantes.
– Coisas do mundo! – respondeu outro.
Estes commentarios foram interrompidos pela continuação da leitura.
– João Carrasqueiro.
– Prompto, senhor – bradou um velho.
– A mezada, hein? – disse Bento Pertunhas, fitando-o por cima dos oculos. – O rapaz não se esquece.
– Deus Nosso Senhor o ajude, que bem bom filho tem saido.
– D. Magdalena Adelaide de…
– É a morgadinha, é a morgadinha – disseram a um tempo muitas vozes.
– Agradecido pela novidade; era cá muito precisa a explicação – disse o Pertunhas: e passando a carta para uma mulher, que era a encarregada de fazer a distribuição a quem a podia gratificar, accrescentou:
– Leve-lh'a a casa.
E proseguiu:
– Augusto Gabriel…
– É o mestre-escola…
– Ora fazem o favor de estar calados! Esta… como elle vem por aqui… pode ficar… ainda que… será melhor levar-lh'a a casa, leve, leve tambem…
– João Cancella.
– É