A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio

A Morgadinha dos Cannaviaes - Dinis Júlio


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reza a respectiva chronica, é obra das mãos de José de Nicodemus; os Santos Martyres de Marrocos, da igreja de S. Francisco, etc., etc. Sobre a cómmoda de pau preto era devotamente venerado o mais rubicundo, menineiro e bem disposto Santo Antonio, que ainda modelaram as mãos de santeiro afamado. E seja dito de passagem que não sei por que a tradição popular dá a este austero franciscano o aspecto chorudo de um moderno reitor de farta abbadia de aldeia.

      No interior da redoma onde se abrigava o santo estava estabelecido o museu de raridades da tia Dorothéa. Eram flores artificiaes, concharinhas e caramujos, um rosario de caroços de azeitonas, uns poucos de vintens de prata, enfiados e pendentes do braço do menino Jesus, que o santo sustentava ao collo, veronicas, escapularios, uma campainha benta, uma medida do braço do Senhor de Mattosinhos, um pão do sacco de Santa Isabel, que vae na procissão de Cinza, no Porto, e outros objectos curiosos.

      A mobilia da sala consistia em cadeiras de palhinha, que gemiam quando entravam em serviço, como militar, cujas articulações o rheumatismo invadiu; mesas cobertas com colchas de chita; bahús cravados de pregaria amarella, disposta em lettras e arabescos; uma papeleira de pau santo, e uma gaiola com um canario decrepito, objecto, havia muitos annos, das tentações de um gato, mais decrepito do que elle e pertencente ás classes inactivas.

      Henrique, adivinhando por todo aquelle cheiro de beatitude e de antiguidade que alli se respirava, os habitos da casa, sentia já certo desconfôrto, como de quem é arrancado de subito ao ambiente, em que se educou e vive, e engolfado n'um ambiente extranho; especie de asphyxia moral, não menos angustiosa do que a do peixe fóra da agua.

      A saudade que ao principio sentira, dissipára-se já. O perfume da saudade é como o de certas flores, que só se percebe quando de longe o recebemos. Se, illudidos, as tentamos aspirar de perto, dissipa-se.

      Acontecera isto com Henrique.

      Cada vez portanto se lhe radicava mais funda a crença de que não seria por muito tempo que se demoraria alli.

      – Os emollientes do doutor – pensava elle, emquanto sua tia falava – serão efficazes para quem os pudér soffrer sem enjôo, mas para mim…

      No entretanto sentou-se.

      – Ora o Henriquinho! – dizia ainda D. Dorothéa, pondo-se de braços cruzados em contemplação defronte d'elle. – Ó menino, onde foste tu arranjar esses bigodes tamanhos? Então isso agora usa-se?

      Pergunta que sobremaneira embaraçou Henrique.

      – Quem quer usar, usa, tia. Não é obrigação – respondeu elle, com leve mau humor.

      – Em nome do Padre e do Filho! – dizia Maria de Jesus, benzendo-se e tomando logar ao lado da ama. – Até nem sei que parece, lembrar-se a gente que trouxe este marmanjão ao collo!

      O termo «marmanjão» não soou bem a Henrique. Principiava tambem a impaciental-o o vêr as duas embasbacadas deante d'elle; um homem sujeito a uma exposição d'estas, por mais que faça, não atina com o modo de arrostar com ella, que não seja ridiculo. Ora Henrique, como todo o homem da sociedade, o que mais que tudo temia n'este mundo era o ridiculo.

      Felizmente acudiu-lhe a caridosa intervenção da tia Dorothéa, que fez perceber á criada a conveniencia de ir preparando a ceia de Henrique, que havia de querer recolher-se. Henrique, apesar de não costumar cear, acceitou a ideia, porque o frio, as fadigas e a má alimentação dos ultimos dias, haviam-lhe desafiado o appetite. Demais, o espanto de D. Dorothéa, quando lhe ouviu dizer que as ceias não entravam nos seus habitos, foi tal que lhe tirou o animo de rejeitar.

      – Não ceias! Ó menino, que me dizes? então vaes-te deitar sem ceia? Ora essa! Por isso vocês são uns pelens. Vejam lá que arranjo este! ficar toda a santa noite sem alguma coisa que dê sustento ao estomago, que aconchegue. Nada, nada; a ceinha em todo o caso. E tu has de tambem querer mudar de fato?

      – Eu venho bastante molhado.

      – Ai, então depressa, menino, que não ha nada peor do que a roupa molhada no corpo. Ó Maria… ou deixe estar, eu vou… Anda, Henriquinho, anda lá, que eu guio-te ao teu quarto para te arranjares.

      Meia hora depois, Henrique banhado, enxugado e commodamente vestido, saboreava uma gorda gallinha de canja, sobre uma mesa coberta de toalha lavada, e na melhor louça da copeira.

      Elle que tinha sempre severidades de critica contra os mais afamados cozinheiros de Lisboa, estava achando deliciosa aquella comida primitiva, com que o regalava a tia.

      Esta sentou-se a vêl-o comer, e com a mesma familiaridade, que Henrique já anteriormente extranhára, Maria de Jesus sentou-se ao lado da ama.

      Ambas tinham ceado já; pois que o faziam ao cerrar da noite.

      Emquanto Henrique comia, ellas, sem deixarem de o observar com a natural curiosidade de quem havia tanto tempo não tivera um hospede, faziam-lhe perguntas, ás quaes elle ia respondendo conforme lhe era possivel.

      – Tu dizias-me na tua carta que estavas doente; pois olha que na cara não o parece.

      – Não – concordou a criada – tem boas côres, e, vamos, a magreza inda não é lá essas coisas.

      Era este o ponto fraco de Henrique; respondeu logo ao reclamo.

      – Não me digam isso! Então não vêem como estou? Pois isto é lá côr de saude? de febre, será. Gordo? pois acham-me gordo?!

      – Gordo, não digo, mas assim, assim… E depois como vieste de jornada… Mas a final que molestia é a tua, menino?

      – Eu sei lá, tia Dorothéa? Nem os medicos a conhecem bem. É, entre outras coisas, uma tristeza, uma melancolia, que me não deixa, que me persegue por toda a parte. Ás vezes parece-me que sinto apertar-se-me dolorosamente o coração; outras, são palpitações, ancias… Tenho quasi vontade de chorar, irrito-me, impaciento-me, não quero que me falem, nada quero vêr, nada quero ouvir; não leio, não durmo, não como. Finalmente todo eu sou doença e tristeza.

      A boa tia Dorothéa olhava com sisudez e attenção para o sobrinho, emquanto elle falava, e na physionomia iam-se-lhe desenhando, ao ouvil-o, os mais expressivos signaes de espanto e consternação.

      Assim que Henrique terminou a exposição, ella disse-lhe com uma adoravel candura:

      – Então é assim uma especie de mania!

      Á palavra «mania» Henrique sobresaltou-se. Seria a consciencia que se sentiu ferida?

      – Mania? Ó tia Dorothéa! Mania! Veja bem, olhe que o termo é forte? Mania!

      – Sim, menino – insistiu ingenuamente a boa senhora – pois olha que não é outra coisa. Pois isto de estar triste sem ter de quê… sim… porque não te morrendo ninguem, nem te doendo nada…

      Ó poetas devaneiadores, ó almas melancolicas, que percebeis no sussurrar das brisas, no ciciar das folhas, no murmurar dos arroios, queixas occultas de dryades e de nayades, sentidas vibrações das harpas de fadas aereas, que vivem em palacios de nuvens; ó corações inoculados de poesia, que vos confrangeis e gottejaes lagrimas sinceras ao desmaiar do dia, ao desfolhar das arvores no outomno; poetas, que escutaes, com Victor Hugo, as vozes interiores, os cantos do crepusculo, e com elle adivinhaes os mysterios dos raios e das sombras, perdoae a involuntaria blasphemia da tia Dorothéa, que não contem o menor fermento de malicia; perdoae-lhe a dura expressão de que ella se serviu para caracterisar os vossos arroubamentos, as vossas tristezas vagas, os vossos devaneios, e crêde que, apesar da phrase, terieis n'ella uma alma mais afinada para sympathisar comvosco, do que tantas que por ahi fazem gala de vos comprehender melhor.

      Henrique não podia porém digerir a expressão, de que se servira a tia, para diagnosticar o seu mal.

      – Mania! – repetia elle – essa agora! Sempre é forte de mais. Mania, não, tia Dorothéa, lá isso não. Mania!

      – Eu lhe digo – acudiu a criada. – Não vá sem resposta; que está quasi como o cunhado da Rosa do Bacello. A senhora não se lembra? Andou aquella alminha por ahi sempre triste, sempre a falar só, até que a final


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