A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio

A Morgadinha dos Cannaviaes - Dinis Júlio


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nevoentas alturas do credo homoepathico! Ao mesmo tempo manifestou-se n'elle uma progressiva degeneração de gôsto; não podia ler uma pagina dos livros que lhe eram predilectos; desfazia-se sem desgôsto de quadros, móveis, estatuas e objectos curiosos que colleccionára com paixão; detestava a musica, o theatro, n'uma palavra, tornára-se um dos maiores flagellos, que podem pesar sobre a humanidade e que muito em especial causam o supplicio dos medicos que os aturam.

      Foram estes os que, em parte de boa fé, em parte com o desculpavel intuito de sacudirem de si tal pesadelo, lhe deram um dia de conselho, que fôsse viajar.

      Henrique de Souzellas julgou ouvir uma heresia n'esta palavra: viajar.

      Viajar? E as suas aneurismas? E as suas imminencias apopleticas? E as suas disposições para tantas outras enfermidades? Pois um homem pode lá viajar com esta bagagem pathologica?

      E se lhe désse alguma coisa pelo caminho? Recusou com mau humor a receita, e ficou na capital.

      Exacerbaram-se os padecimentos, repetiram-se as consultas, e os medicos, como se para isso apostados, a insistirem em que saisse de Lisboa.

      – O senhor não tem nada – diziam alguns.

      Henrique perdia a cabeça, ao ouvir isto.

      Prolongou-se este estado de coisas, até que um dia o hypocondriaco rapaz persuadiu-se muito sériamente de que estava chegada a sua hora extrema.

      Um medico velho e grave, que por essa occasião o escutou, em vez de se rir d'elle, disse-lhe, muito sisudo:

      – Homem! O senhor está realmente mal. Esse estado de imaginação não pode prolongar-se mais tempo, sem romper por ahi em alguma doença que o sacrifique. Se quizer salvar-se, saia-me d'aqui, emquanto é tempo. Quebre por todos os habitos, e escolha entre as fortes impressões de uma grande capital, como Paris ou Londres, ou as mornas sensações de um completo viver de aldeia. Os revulsivos e os emollientes curam por meios oppostos ás vezes as mesmas molestias.

      Ora succedeu que n'esse mesmo dia recebesse Henrique um presente de fructa de uma sua tia, santa creatura que elle, desde creança, não tornára a vêr.

      Vivia regalada em uma aldeia sertaneja do Minho onde na idade de cinco annos Henrique passára alguns mezes na companhia de sua mãe.

      Aquelle presente frugal recordára-lhe esse tempo, já meio apagado na memoria, e conseguira fazer-lhe saudades. D'ahi uns vagos desejos de voltar a vêr aquelles sitios.

      Por isso ao ouvir o conselho do doutor, Henrique nomeou-lhe a aldeia, em que esta sua parenta vivia.

      O velho facultativo applaudiu a ideia e instou para que fôsse abraçada.

      O sobrinho escreveu então á tia, e, passados dias, punha-se a caminho.

      Mil vezes se arrependeu, depois da resolução tomada; mil vezes mandou ao diabo o conselho do medico e phantasiou horriveis exacerbações em todos os seus males. Os inconvenientes de uma jornada, feita ainda segundo os velhos processos, com malas, coldres e pistolas, botas de montar e almocreve, ampliava-lh'os a proporções estupendas, o prisma da hypocondria.

      No momento em que nos associámos ao cavalleiro, caira elle n'um desalento profundo, n'um quasi convencimento de proxima anniquilação, do qual nem a loquacidade do almocreve, condimentada, como era, de pragas eloquentes e de cantigas pouco edificantes, o conseguia arrancar.

      Havia mais de uma hora que estavam luctando com as difficuldades da ascensão do ingreme e escabroso caminho, que torneava o monte como as voltas de uma helice.

      Era este monte uma como irregular pyramide, levantada no meio da amplissima bacia, onde tinha assento a aldeia que Henrique demandava; por isso o estafado rapaz não podia atinar a razão de conveniencia pela qual, tendo de procurar o valle, assim porfiavam em descrever as fastidiosas curvas da quasi interminavel espiral, que os approximava do vertice.

      Não se concebe uma estrada menos logica do que aquella.

      No nosso paiz são porém frequentes estas faltas de logica nas estradas.

      O almocreve havia-se separado por momentos de Henrique com o fim de encurtar distancias, seguindo por um atalho só franqueavel a gente de pé.

      Henrique nem desviára os olhos para o fundo valle, que se abria á esquerda, velado pela densa nevoa d'aquella atmosphera saturada de humidade, nem prestava attenção á agreste e selvatica paizagem, do lado direito, toda encrespada de pinheiraes nascentes e de espinhosas tojeiras.

      Os olhos procuravam, em anciosa interrogação, o mais alto da flexuosa ladeira que subia, no sitio em que ella, formando um cotovello, furtava á vista o seguimento ulterior.

      N'estas curvas das estradas sorri sempre de longe ao viajante, cançado e aborrecido, que pela primeira vez as trilha, uma promettedora esperança.

      – D'alli verei talvez o termo do caminho – pensa elle.

      Mas quantas vezes, ao approximar-se, esta esperança lhe foge!

      Assim aconteceu a Henrique, que, ao chegar á almejada inflexão e quando esperava principiar emfim a descer para o valle e approximar-se da aldeia, viu que o macho, pratico no caminho, e á disposição de cujo instincto elle collocára a razão, dobrava ainda para a direita e continuava a contornar e a subir o monte. A espiral não terminára ainda. Henrique olhou em torno de si, profundou a vista nas sombras do valle, nada pôde descobrir, que lhe promettesse a aldeia procurada. Muita arvore, povoação nenhuma!

      Teve um paroxismo de impaciencia!

      – Isto não é estrada! – exclamou elle, exasperado. – São os nove circulos do Inferno de Dante virados para fóra.

      E a luz do dia a fugir cada vez mais, e a chuva a augmentar, a calar através do grosso gabão de jornada que Henrique vestia! O desgraçado vergava sob o pêso da sua consternação.

      Ajuntou-se-lhe outra vez o almocreve, assobiando com fleugma desesperadora.

      – Com um milhão de demonios! – bradou-lhe Henrique, não podendo conter-se. – Essa maldicta terra foge deante de nós, homem!

      – Estamos quasi lá, meu patrão. É alli logo adeante – respondeu o almocreve, sem se alterar. Vê aquella capellinha branca em cima d'aquelle monte? pois fica já para além da povoação. É a ermida da Senhora da Saude. É um instante.

      – Desde as duas horas da tarde que me dizes que é um instante, e eu estou acreditando que cada vez nos afastamos mais. Pois se a aldeia fica alli em baixo, para que diabo subimos nós? Ás voltas que temos dado, estou persuadido de que vamos tão adeantados como quando principiámos a subir.

      – Pois olha que dúvida! Se se fôsse a direito lá por baixo, era mais perto, mas…

      – Mas foi então pelo prazer de trepar, que me trouxeste por aqui?

      – Não é isso, patrão; mas bem vê v. s.a que o caminho lá por baixo é todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar taes voltas, que a final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá ideia de que o caminho lá por baixo é todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar taes voltas, que a final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá ideia de como estão os riachos por lá! Só o esteiro do almargeal é para uma pessoa se afogar. Mas tenha o patrão paciencia, que pouco falta agora. Vê v. s.a aquelle tronco de sobreiro que parece, visto d'aqui, um frade de capuz?

      – É alli?

      – Não, senhor – disse o homem, rindo; – mas vêem-se d'aquelle sitio as primeiras casas da aldeia.

      – As primeiras! – murmurou Henrique em tom lastimoso; e penderam-lhe os braços com mais desalento e augmentou-se-lhe a flexão da columna vertebral.

      O almocreve proseguiu, para o distrair:

      – Tenho passado por estes sitios muita vez com neve de se cortar á faca e de noite. E olhe que nunca tive mêdo. Qual historia! Mêdo? Isso sim! E vamos lá! o sitio não é dos mais seguros. Vê o senhor essa cruz preta, ahi á sua mão direita, pregada no tronco d'esse pinheiro? Pois ahi mesmo mataram um homem, que vinha


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