A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio

A Morgadinha dos Cannaviaes - Dinis Júlio


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e a juvenil das raparigas e creanças n'aquelle piedoso côro, produzindo um effeito que acabou por levar ao auge a impaciencia do nosso spleenetico viajante.

      – Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha, que não a acabamos de attingir?

      O almocreve d'esta vez nem respondeu; sacudiu uma chicotada sibilante junto ás orelhas do muar, o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira orlada de arvores, volveu á direita e, á voz do almocreve, estacou em frente de um portão de quinta resguardado por um telheiro rustico.

      – É aqui – disse o guia.

      – Até que emfim! – exclamou Henrique, suspirando. Suspiro de conforto e de tristeza ao mesmo tempo, como o do homem cançado da vida, quando antevê o repouso do tumulo. Em Henrique era intima a convicção de que a quinta de Alvapenha lhe havia de servir de cemiterio.

      II

      O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no solido portão de castanho, deante do qual tinham parado.

      As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois cães, que acudiram de longe ao signal e vieram ladrar á porta com furia, que fez agourar mal a Henrique da cordialidade da recepção que o esperava. De facto as intenções dos quadrupedes não pareciam demasiado hospitaleiras. O almocreve divertia-se excitando-os de fóra com uma vara de vime, apesar de quantas recommendações de prudencia lhe fazia Henrique, não em demasia socegado.

      A final ouviu-se uma voz aspera e rouca, chamando os cães á ordem, se é licito, sem irreverencia, empregar n'este caso a phrase consagrada para outro genero de algazarra.

      Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a aldraba, gemerem os gonzos, e emfim um homem de lavoura alto e magro, trazendo em punho um lampeão de frouxissima luz, appareceu-lhes á porta e saudou-os com a fórmula do estylo:

      – Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.

      E, levantando a luz á altura do rosto de Henrique, poz-se a miral-o com a menos ceremoniosa curiosidade.

      – É o sobrinho cá da senhora, não é verdade?

      – Sou eu mesmo.

      – Está um tempo muito azêdo. Eu já julgava que não vinham. Entre.

      Henrique não se resolvia a acceitar o convite, porque lhe continuavam a impôr respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois façanhosos quadrupedes, cuja má vontade era a custo refreada.

      – Entre, entre – insistia o homem.

      – Mas esses animalejos?..

      – Ah! isto não faz mal. Sae-te p'ra lá, Lobo: passa, Tyranno!

      Lobo! Tyranno! Que nomes! E dizia o homem que não faziam mal!

      – C'os diabos! ti'Manuel – disse o almocreve – em occasião de se esperarem hospedes, não se soltam assim os cães. Os diabos não são nenhuns cordeiros. Olhe no outro dia o sr. Joãosinho das Perdizes, que por pouco lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas.

      – Forte perca! – resmoneou o outro. – Não trouxesse cá os d'elle. Não tem dúvida; entre o senhor, que elles não lhe fazem mal.

      – Não entro; assim é que não entro – teimou Henrique, a quem as palavras do almocreve acabaram de fortificar na sua resolução.

      O homem em vista d'isto encolheu os hombros e bradou:

      – Ó Luiz!

      Uma creança de cinco annos, e quasi nua, correu ao chamamento.

      – Enxota para lá esses cães, que aqui o senhor tem mêdo.

      A creança, á palavra mêdo, fitou Henrique com uns olhos espantados, e tomando do chão um tronco de tojo, deu-se a zurzir desapiedadamente nas feras, que, com todos os signaes de respeito, de orelha baixa e cauda abatida, fugiram deante d'ella.

      O orgulho de Henrique de Souzellas ficou um tanto maltratado com o desfecho da scena; mas a prudencia consolava-o, dizendo-lhe que andára ajuizadamente.

      – Agora vossemecê – disse o camponez para o almocreve – arranje-se como puder e mais a bêsta ahi pelas lojas, emquanto eu ensino o caminho ao senhor.

      – Vão, vão com Nossa Senhora, que eu cá me arranjarei. Muito boas noites, sr. Henriquinho.

      – Adeus, José – disse Henrique, passando para a mão do guia a esportula da gorgeta, e após seguiu, com as pernas trôpegas de cavalgar, o homem do lampeão.

      Não era para dissipar a impressão penosa, que subjugava o espirito de Henrique, o aspecto que lhe offerecia, áquella hora da noite, a parte da quinta, por onde era conduzido para a casa de Alvapenha.

      Primeiro, trilhou o pavimento molle de um quinteiro ou eido, estradado de altas camadas de matto e embebido de chuva, d'onde se exhalava um cheiro de cortumes, pouco de lisonjear o olfacto mal habituado a estes aromas campezinos. A luz do lampeão a custo conseguiu evitar a Henrique o tropeçar n'um carro desapparelhado, n'uma dorna, n'uma pia para gallinhas, e em outros objectos que atrancavam o quinteiro. Transpondo a cancella que terminava este, seguiram por uma rua de folhas; atravessaram diagonalmente a horta, pelo carreiro que a dividia; ladearam a eira e a casa do cabanal, e, effectuados mais alguns rodeios, acharam-se finalmente junto da escadaria de pedra, por onde se subia para uma especie de patamar ou varanda alpendrada, que servia de um modesto portico á casa de Alvapenha.

      A propriedade da tia de Henrique era um genuino typo de casa rustica, á moda do Minho.

      Ao subir as escadas, e apesar de mal poder divisar os objectos á escassa luz que os allumiava, recebeu Henrique a primeira impressão agradavel de toda aquella mal estreada excursão.

      Estas escadas, esta varanda de pedra e este alpendre avivaram n'elle memorias, quasi apagadas. Lembrava-se agora vagamente de ter brincado alli, a cavallo n'esse mesmo parapeito, então, como agora, enfeitado de uma formidavel cohorte de aboboras meninas, victimas votadas ás festas do proximo Natal.

      A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um grande vaso de louça, que elle, havia vinte e tantos annos, conhecera, e ao qual tinha a ideia vaga de haver quebrado uma aza; abaixou-se no intento de se certificar, e viu que de facto ainda lhe faltava a aza, sendo este o unico estrago que após tanto tempo o velho utensilio soffrêra.

      – É admiravel! – não pôde deixar de exclamar Henrique ao fazer a descoberta, vendo que em oito dias operava maior reforma nos seus aposentos em Lisboa, do que n'um quarto de seculo se realisava em Alvapenha.

      O hortelão bateu á porta e disse para dentro que era o sobrinho da senhora que chegava.

      Seguiu-se um mexer de cadeiras, um trocar de vozes, um arrastar de passos; moveu-se a chave na fechadura; abriram-se as portas e no limiar appareceu de braços abertos a tia Dorothéa, e por traz d'ella, elevando a luz acima do hombro da ama, a criada Maria de Jesus, a que, havia trinta annos, lhe era companheira e interessada em lagrimas e pesares. Já Henrique lhe andára ao collo no tempo em que estivera creança na quinta.

      Deante da figura esbelta, do typo varonil e do comprido bigode de Henrique, a sr.a Dorothéa reprimiu as suas expansões e quasi recuou.

      Nunca mais vira Henrique desde que este, aos cinco annos, deixára Alvapenha, e dir-se-hia que esperava ainda encontrar os mesmos cabellos louros e annelados e o mesmo rosto menineiro da travêssa creança de outros tempos, em vez do homem feito, em que os vinte e tantos annos volvidos o tinham transformado.

      Ha d'estas illusões na gente.

      A mais segura razão não está precavida contra ellas; a infundada surpreza invade-nos de subito, e os labios não podem prender a exclamação que a denuncia.

      – Pois na verdade tu és o Henriquinho?! – disse espantada a boa senhora.

      – Eu julgo que sim, tia Dorothéa.

      – Tu! Ai como estás um homem! Ó Maria de Jesus, você não quer vêr isto!?

      – Parece mesmo um soldado! – disse a criada, igualmente estupefacta.

      – Credo,


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