A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio

A Morgadinha dos Cannaviaes - Dinis Júlio


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vontade com as elucidações do cicerone; olhou para elle com desconfiança e quasi julgou vêr moverem-se sombras suspeitas por entre os troncos dos pinheiros. Apalpou nos coldres os cabos das pistolas, e approximou as esporas dos ilhaes da cavalgadura.

      Dentro em pouco attingiam o indicado tronco de sobreiro, de junto do qual deviam avistar a aldeia.

      Henrique olhou; viu lá no fundo do valle muitas arvores, mas continuou a não enxergar vestigios de casas.

      – Onde está a aldeia que dizias, homem?

      – D'ahi já se vê – disse o almocreve, correndo para alcançar o cavalleiro. – Não vê v. s.a, além, além, aquelles pinheiraes mansos?

      – Vejo, sim.

      – Pois já são da freguezia. Se fôsse mais claro havia de avistar a casa do guarda. É a tapada dos Bajuncos, que pertence á morgadinha dos Cannaviaes.

      Henrique não respondeu. A distancia a que ficava ainda a tal tapada fel-o suspirar.

      Emfim, passados minutos, principiaram a descer para o valle, costeando sempre obliquamente o monte.

      Cem passos andados, fez-lhe o almocreve notar um pequeno ponto branco, que se divisava ao longe por entre a rama do arvoredo, mas já indistinctamente, em virtude do adeantado da hora e da intensidade da neblina.

      – Lá está a capella da freguezia – dizia o homem.

      – Alli? É um seculo para lá chegar!

      – Qual! Estamos aqui, estamos lá. Eh, russo!

      E applicou uma vigorosa vergastada nas ancas do macho, que accelerou o passo.

      O homem continuou:

      – Até se fôsse mais dia podia-se vêr d'aqui a pedra, que está no cemiterio novo, e que é da familia da morgadinha dos Cannaviaes. Foi a mãe d'ella a primeira pessoa que lá se enterrou, e até hoje mais ninguem. O povo, como o outro que diz, tem sua aquella em se enterrar fóra da egreja. Elle, a falar a verdade… Eu bem sei que tudo vae do costume… mas emfim a gente foi creada n'isto… Mas a pedra é coisa asseada. É como as que estão na cidade.

      Henrique, transido de frio, quebrado de desalento, já nem attendia ao que o homem ia dizendo.

      Cerrára-se a noite de todo, quando attingiram emfim o valle. O terreno mudava agora de aspecto. Appareciam já, aqui e alli, alguns indicios de cultura, annunciando a proximidade de um povoado. Os caminhos estreitavam, internando-se no valle, e seguiam tortuosamente por entre muros tôscos de pedra ensossa, silvados e sebes naturaes. A chuva, que não cessára de cair, transformára estes caminhos, onde o declive não dava escoamento ás aguas, em charcos e tremedaes.

      Novos indicios da vizinhança da aldeia iam successivamente apparecendo.

      Aqui era uma manada de bois soltos, em direcção do curral, guiados por uma creança de palhoça e pernas nuas, os quaes paravam a olhar com aquella expressão de composta curiosidade, que lhes é peculiar, para o recem-chegado visitante da aldeia. Não faltou receio a Henrique, que suppôz a estes bonacheirões quadrupedes a indole travêssa e bravia dos touros, a cuja chegada tantas vezes fôra assistir em Lisboa.

      Mais adeante passava por elles uma fileira de carros a vergarem sob o pêso do matto e atroando os ares com o chiar incómmodo das rodas sob o eixo, incómmodo para os ouvidos cidadãos de Henrique, cujos nervos se irritavam com elle, mas apparentemente agradabilissimo para os conductores aldeãos, que ou dormiam ou cantavam com aquelle acompanhamento.

      N'um e n'outro ponto deparavam-se-lhe já algumas casas de tectos de colmo, de cujas innumeras fendas saía um fumo espêsso, que a atmosphera humida mal deixava elevar nos ares. No olfacto deshabituado de Henrique de Souzellas o cheiro resinoso e activo das pinhas e das agulhas sêccas dos pinheiros, queimadas no lar, produziam sensações muito longe de serem agradaveis.

      Augmentava-se-lhe com tudo isto a funda melancolia que já lhe tomára o animo.

      – Tantas fadigas para este resultado! – pensava elle. – Sair de Lisboa para me enterrar n'esta aldeia escura e suja! Enganou-se o parvo do doutor. Cuidava que me salvava e matou-me. Eu morro por certo aqui. Deus lhe perdôe o homicidio.

      Os caminhos succediam-se aos caminhos, qual mais tortuoso e incómmodo de trilhar; as curvas complicavam-se como as ruas de um labyrintho. Aqui subiam; desciam mais além, para subir outra vez. Umas vezes caminhavam em terreno descoberto, outras penetravam em tão estreitas quelhas, apertadas entre paredes argilosas e humidas e toldadas de ramos entrelaçados, que só o instincto do animal podia evitar-lhes os perigos. Ora soavam as patas do macho como em chão lageado, ora amortecia-lhes o som um terreno, que a chuva encharcava, e a agua lamacenta vinha salpicar o rosto do cavalleiro.

      As casas eram já frequentes, e algumas de menos humilde apparencia.

      Os cães, que, pelo timbre de voz, mostravam ser gigantes, ladravam raivosos por dentro dos portões ou de sobre os muros das quintas, ao ouvirem os passos da cavalgadura ou a voz do almocreve, que falava ou cantava sempre.

      Outras vezes era um inharmonico grunhir suino que accusava a vizinhança das córtes ou, partindo de um casebre rustico, o chorar de creanças, entremeado com os ralhos das mães e com as pragas dos chefes de familia.

      O almocreve não desistira das suas funcções de cicerone, que sómente interrompia para saudar alguns conhecidos seus, a cuja porta passavam.

      – Estes campos e lameiros – ia dizendo – são da morgadinha dos Cannaviaes; andam arrendados a um compadre meu.

      E exclamava para dentro de uma casa terrea, escassamente allumiada por uma candeia:

      – Boas noites, tia Escolastica. Como vae a pequenada?

      – Ai, é vossemecê, sr. José? Então não entra? – respondia-lhe uma voz feminina.

      – Agora, não, ámanhã.

      E proseguiu para Henrique:

      – É uma santa creatura. A morgadinha…

      Henrique interrompeu-o:

      – Onde fica a final, a quinta de Alvapenha? onde mora minha tia? Não me dirás?

      – É logo ahi adeante, meu patrão. Em nós passando umas casas amarellas que ha ahi… é logo ao pé. Essas casas que digo são tambem da morgadinha, mas ha uma demanda pelos modos.

      O almocreve falava pela decima ou undecima vez na morgadinha. Até esta periodica referencia a uma personagem que elle não conhecia, impacientava Henrique de Souzellas.

      E continuavam a succeder-se em enredado dedalo as quelhas e azinhagas, a ponto de fazer perder toda a orientação. Umas vezes ouviam o ruido das levadas, que as ultimas chuvas tinham engrossado; adeante, transpunham uma ponte rustica, escutando das profundezas do despenhadeiro, que ella atravessava, o fragor das cascatas nos açudes ou o ranger das rodas dos moinhos.

      Henrique a cada momento imaginava cair n'um abysmo.

      – São os açudes do Casal – dizia o almocreve berrando para se fazer ouvir através do estrondo da torrente. – Pertencem á morgadinha dos Cannaviaes.

      Henrique nem alento já tinha para falar.

      Ao triste e quasi sinistro aspecto d'aquella aldeia tão cerrada lhe envolveu o coração a nuvem de melancolia, que cedeu sem resistencia ao crescente torpor que o invadia, como o que desespera da vida e da salvação.

      Mais adeante, excitou-lhe ainda as attenções uma toada plangente, melancolica, monotona, que exacerbou estes effeitos.

      – É uma fiada em casa do Tapadas – disse o almocreve. – É um dos maiores amigos do pae da morgadinha. Vê aquelle muro acolá?

      – Eu não vejo nada. Deixa-me!

      – Pois pertence já á quinta dos Cannaviaes, que a morgadinha…

      – Outra vez! Cala-te para ahi com essa morgadinha – exclamou Henrique.

      Era evidente emfim que estavam em pleno coração do povoado. As casas appareciam


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