A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio
acabou de sorver a ultima colhér de caldo de arroz, que lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera.
– Então não comes mais? – perguntou a tia.
– Muito agradecido; eu o mais que tenho é somno.
– Pois sim, mas é preciso fazer por comer – insistiu ella.
– Ora vá mais este côxão – disse a criada.
– Não é possivel – teimou Henrique, e insistiu para se recolher ao quarto.
– Tens razão, tens – concordou a tia Dorothéa – deves estar fatigado. Vae com Nossa Senhora, menino. E deixa-te lá de pensar e estar triste, que isso não é bom. É fazer por espairecer. Come, bebe, passeia, que é o que dá saude. Nada de malucar.
– Sim – accrescentou a criada – e não queira estar doente, que não tem graça nenhuma.
– E olha, Henriquinho, tu tens por ahi com quem te podes distrahir. O brazileiro Seabra, que tem uma casa como um palacio; o Augustito do doutor, que é um bom mocinho. E depois vae dar um passeio por ahi, um dia até os moinhos outro dia até á ermida da Senhora da Saude. Agora me lembra: a Lenita já mandou ahi outra vez saber se tinha chegado o hospede – disse D. Dorothéa.
– Não foi só a morgadinha…
– Ahi está você a chamar-lhe tambem a morgadinha.
– Então, senhora?! isto é o costume. Mas todas as outras senhoras mandaram tambem o Torquato saber do sr. Henrique. A sr.a D. Victoria e a Christininha.
– Ai, pois cuidadosas são ellas! Tu has de te entender com aquella gente. É uma gente muito dada e sem ceremonia. É preciso lá ir. Olha, ámanhã podes ir visital-as. É um passeio bonito.
Henrique, que tinha estado distrahido durante a conversa das duas, nem se dava ao trabalho de intervir no dialogo em que ellas dispunham já do seu tempo e traçavam-lhe planos de vida.
– Mas vae descançar, menino, vae e faze por dormir. Olha lá, tu costumas dormir com luz?
– Não, tia, não costumo.
– É porque n'esse caso… Ó Maria, onde está aquella lamparina, que me serviu quando eu estive doente, ha seis annos?
– Está lá dentro, senhora; se a senhora quer eu…
– Vê lá, menino…
– Não tia, não quero.
– Ha pessoas que não podem dormir ás escuras – dizia a criada. – Eu, graças a Deus, durmo bem de qualquer fórma.
– Pois sim, mas nem todos são como você. Olha, ó Henriquinho, has de vêr se queres o travesseiro mais alto ou…
– Muito agradecido, tia Dorothéa, tudo deve estar bom – disse Henrique, procurando fugir ás muitas reflexões, perguntas e conselhos, com que as duas o iam perseguindo até o quarto.
– Olha, ó menino, tu bebes agua de noite?
– Ás vezes.
– Você poz-lhe agua no quarto, Maria?
– Puz, sim, minha senhora; pois então? Já minha mãezinha dizia, que antes sem luz do que sem agua.
– Bem, então está bom. Então muito boa noite, menino.
– Boa noite, tia.
– Ai, é verdade. Has de vêr se queres mais roupa na cama.
– Não hei de querer, não, tia.
– Olha que está muito frio. Você quantos cobertores lhe deitou, ó Maria?
– Cinco, senhora.
– Cinco! – exclamou Henrique, quasi horrorisado. – Cinco cobertores!
– É pouco?
– Pouco? – É de morrer esmagado debaixo d'elles.
– Ai, quer não! Olha que está muito frio.
– Bem, bem; eu cá me arranjarei.
– Então, muito boa noite.
– Muito boa noite, tia.
E Henrique ia a fechar a porta.
– Olha… – disse ainda a tia.
Henrique parou.
– Não sei o que é que me esquece…
– Não ha de ser nada, tia; boa noite.
– Não esquecerá?.. Eu sei?.. Emfim… boa noite. Ai, é verdade… Sempre é bom ficar com lumes promptos.
– Ai, sim; lá isso sempre é bom.
– Vês? não que bem me parecia.
– Já lá estão, senhora – disse a criada de longe.
– Melhor; então muito boa noite nos dê Nosso Senhor, menino.
– Muito boa noite, tia.
E Henrique conseguiu fechar a porta.
Estava finalmente só.
– Que desastrada lembrança a minha! – disse o pobre rapaz, ao fechar a porta sobre si. – Como posso eu viver com esta santa e virtuosa gente, que chama manias aos meus padecimentos? Que futuro de impertinencias me espera! Ai, Lisboa, Lisboa, e pensar eu que só posso voltar para ti á custa de outra jornada!
O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade. Um alto leito de almofadas na cabeceira e rodapé de chita, tão alto que se não dispensava o auxilio de cadeira para trepar acima d'elle, uma commoda com um pequeno espelho, um bahú, um lavatorio e duas cadeiras mais, constituiam a mobilia toda.
Henrique de Souzellas sentiu a falta de mil pequenos objectos de toucador, a que estava habituado. Aquelle estrictamente necessario não lhe promettia grandes confortos.
Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvissimo e respirava um asseio e frescura convidativos: os travesseiros, de largos folhos engommados, possuiam uma molleza agradavel ás faces; o colchão de pennas abatia-se suavemente sob o peso do corpo fatigado.
Henrique conchegou a roupa a si; á falta de velador, pousou o castiçal no travesseiro, e, abrindo um livro que trouxera de Lisboa, poz-se a ler, para obedecer a um habito adquirido.
Não teria ainda lido um quarto de pagina, quando ouviu a voz da tia Dorothéa, que lhe dizia de fóra da porta:
– Ó menino, tu já te deitaste?
– Já, sim, tia Dorothéa.
– Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um mêdo de fogos!
– Esteja descançada, tia. Eu apago já.
– Então será melhor. S. Marçal nos acuda.
E afastou-se, rezando ao santo.
Henrique continuou a ler.
D'ahi a pouco a mesma voz:
– Tu já dormes, Henriquinho?
– Não, tia, ainda não durmo.
– Olha que não vás adormecer sem apagar a luz. Eu tenho um mêdo de fogos! Não descanço, emquanto não vejo tudo apagado em casa.
Henrique perdeu a paciencia.
– Pois pode socegar, olhe.
E apagou a véla, meio zangado.
– Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e é melhor fazer por dormir. Então, muito boas noites.
– Muito boas noites – respondeu Henrique quasi amuado; e ageitando-se na cama, dizia comsigo: – E esta! Já vejo que nem ler me é permittido aqui. Olhem que vida me espera! É isto o que me devia curar? Que fatalidade!
Dentro em pouco, os dois felpudos cobertores de papa, unicos que conservava dos cinco primitivos, começaram a fazer o