A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio
na vespera.
O que é sentir-se a gente bem!
– Então não estranhaste?
– Estranhei immenso!
– Sim?! – disse a tia, mortificada.
– Dormi a noite de um somno, e acordei bem disposto; o que para mim é a mais estranha das occorrencias.
A tia sorriu satisfeita.
– Pois antes assim. E agora…
– E agora quero sair, quero vêr esta terra, que me está parecendo um paraiso terreal.
– Espera, menino. Não vás sem almoçar.
– Almoçar! Pois que horas são?
– Não é cêdo; são já sete horas.
– Já sete horas!
E Henrique insensivelmente desviou os olhos para a janella, para vêr como era a natureza, a uma hora a que raras vezes a examinava.
– E então acha que se pode almoçar ás sete horas?
– Por que não? Se está já prompto.
– Bom; almocemos. O doutor disse-me que tomasse os habitos da aldeia. Principiemos por este.
Entrando para a sala do jantar, Henrique viu deante de si uma taça de leite espumante, tépido, odorifero, extrahido de pouco tempo.
Foi por elle que principiou o almoço.
Pela primeira vez na sua vida disse elle ter bebido o leite verdadeiro, o leite que não faz mentir a analyse dos chimicos, de que os physiologistas exaltam as qualidades nutritivas, de que os poetas das georgicas cantam as delicias e virtudes; só agora os comprehendeu elle, que bem differente d'aquillo era o aguado e quantas vezes derrancado sôro, a que estava habituado na cidade.
D. Dorothéa, almoçando, e Maria de Jesus, servindo, falaram, segundo o costume, continuadamente.
Henrique, d'esta vez, falou tanto como ellas.
Ouvia-as já com mais attenção e respondia-lhes com mais vontade e paciencia.
Falaram em muitas coisas.
A tia deu parte ao sobrinho de que varias pessoas da vizinhança, sabendo-o chegado, lhe tinham mandado presentes de gallinhas, offerecendo-se, ao mesmo tempo, para lhe mostrarem as raridades da terra; disse mais que as senhoras da quinta do Mosteiro tambem tinham já mandado saber d'elle, Henrique, e lembrou que seria delicado ir visital-as aquella manhã.
Henrique concordou em tudo, quasi sem reparar em quê, e terminando o almoço apressou-se a sair para o campo.
– E se te perdes, menino? – lembrou a tia.
– Se me perder, farei por achar-me.
Riram-se muito as boas mulheres e deixaram-o ir.
Dentro em pouco, Henrique atravessava a quinta, que tambem então lhe parecia graciosa, de uma graça bucolica, a que não estava habituado. O aspecto melancolico da vespera desvanecera-se. Até para ser completa a mudança, estavam encadeados nas casotas o Lobo e o Tyranno, cujas boas graças comtudo procurou conquistar, atirando-lhes biscoutos.
Foi um passeio delicioso o que elle deu. Tudo quanto via lhe era novidade, tudo lhe captivava a attenção e o distrahia dos seus lugubres pensamentos.
Depois de muito andar, de subir collinas, de descer valles e costear ribeiros, foi sair a um pequeno largo, ao fim do qual havia uma casa terrea, caiada de branco, com portas verdes e janellas envidraçadas, sendo os vidros em alguns dos caixilhos substituidos por papel. Á porta d'esta casa estava muita gente parada; mulheres, velhos, moços, creanças, uns sentados, outros deitados, outros a pé e encostados á umbreira, e todos apparentemente aguardando alguma coisa ou alguem do lado de uma das ruas, que vinha terminar no largo, e para a qual se dirigiam todos os olhares.
Henrique approximou-se d'esta casa com alguma curiosidade, que cêdo satisfez, vendo em uma taboleta, suspensa no alto da janella, a seguinte pomposa inscripção: «Repartição do correio», e, como a confirmar o distico, um córte feito na porta para a recepção das cartas.
Lembrando-se da conveniencia de avisar o empregado do correio para lhe serem remettidas a Alvapenha as cartas que lhe viessem de Lisboa, Henrique entrou na repartição.
Consistia esta n'uma loja apenas, mobilada com um banco de pinho e dividida por um mostrador, para dentro do qual se alojava todo o pessoal do serviço, isto é, um homem por junto; e era este o sr. Bento Pertunhas, personagem importante na terra, e a cuja intelligencia e solicitude estavam confiadas mais do que uma funcção. Além de servir, em interinidade permanente, como muitas vezes são as interinidades do nosso paiz, este cargo, dito por elle, de «director do correio», estava de posse s. s.a de uma das cadeiras de latim e de latinidade, com que se procura em Portugal fomentar nos concelhos ruraes o gôsto pelas lettras antigas; era ainda regente e director da philarmonica da terra, armador de igreja em dias festivos, ensaiador de autos e entremezes populares, e, quando Deus queria, auctor de alguns tambem.
Vendo entrar Henrique nos seus dominios, o illustre funccionario tirou cortezmente o seu bonnet de pelle de lontra e ergueu-se da banca para cumprimentar tão honrosa visita. Nos cumprimentos que formulou disse o nome de Henrique.
Admirado por ser já conhecido, Henrique interrogou o latinista e, achando-o muito informado de tudo quanto lhe dizia respeito, convenceu-se de que estava na presença de um esmerilhador de vidas alheias do mais fino quilate e de um falador de assustar.
Com o fim de cortar a divagação, em que o homem entrára a respeito de certa viagem que fizera a Lisboa, perguntou-lhe Henrique se o correio não chegára ainda.
– Saiba v. s.a que ainda não – respondeu o sr. Bento Pertunhas – mas não deve tardar; o homem que d'aqui vae buscar as malas á villa, se bem andasse, já cá podia estar. Esse formigueiro de gente, que v. s.a ahi vê á porta, está á espera d'elle. Hoje então, que chegam as cartas do Brazil, ninguem pára com este povo. Dão-me cabo da paciencia. Isto é um inferno! Eu sirvo este logar interinamente, emquanto o empregado está paralytico; porque eu tenho outro cargo publico; sou professor de latinidade.
– Ah!..
– É verdade, mas a minha vocação era para as artes. Meu pae queria que eu fôsse padre e mandou-me ensinar latim; mas já então a minha paixão era a musica. Eu ainda queria que v. s.a me ouvisse tocar trompa, que é o instrumento que mais tenho estudado… Se v. s.a se demorar ha de fazer-me o favor…
– Com muito gôsto.
– Não poder um homem seguir no mundo a sua vocação!
– Ainda assim não se pode queixar muito. O cultivo das lettras latinas deve-lhe proporcionar gosos; porque emfim para quem possue instinctos de arte, a leitura dos poetas já é um lenitivo contra as agruras da vida.
O mestre Pertunhas fitou Henrique com olhos muito abertos.
– Os poetas? Os poetas latinos! Ora essa! Então parece-lhe que pode achar-se gôsto em lêl-os? Ai, meu caro senhor, eu por mim tenho-lhe uma vontade!.. O latim!.. a mais destemperada e desesperadora lingua que se tem falado no mundo! Se é que se falou – accrescentou em voz baixa.
– Então duvida que se falasse latim? – perguntou Henrique, sorrindo.
– Eu duvido. Não sei como os homens se podessem entender com aquella endiabrada contradança de palavras, com aquella desafinação que faz dar volta ao juizo de uma pessoa. Sabe o senhor o que é uma casa desarranjada, onde ninguem se lembra onde tem as suas coisas quando precisa d'ellas e passa o tempo todo a procural-as? Pois é o que é o latim. Abre a gente um livro e põe-se a traduzir e vae dizendo: «As armas, o homem e eu, canto, de Troia, e primeiro, das praias.» Quem percebe isto! Ora agora peguem n'estas palavras e em outras, que elles punham ás vezes em casa do diabo, e façam uma coisa que se entenda! É quasi uma adivinha. Ora adeus! E depois – continuou elle, enthusiasmado com o riso de Henrique, suppondo-o de approvação – e depois as differentes maneiras de chamar a um objecto? Isso tambem tem graça. Nós cá dizemos