A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio
diga. Então como a imagina? Annica, não tens ahi um guardanapo?
– Como a imagino? Imagino-a uma morgada, e está dicto tudo; uma senhora nutrida, a rever saude por todos os póros, encarnada como uma romã, sobre quem os vestidos á moda assentam como pendurados de um cabide, as mãos cheias de anneis, meias luvas de retroz, um chapéo com uma cercadura de rendas, pousado no cocoruto da cabeça… v. ex.a ri-se? Acertei?
– Parece-me que sim; mas julgue-o por si já que tem á vista o original.
– Como?!
– A morgadinha dos Cannaviaes, sou eu.
– Vossa Excellencia!..
Henrique de Souzellas, apesar do seu uso do mundo, esteve por muito tempo sem saber como sair da situação em que se puzera.
Magdalena ria com toda a vontade; os pequenos riam, por contagio, sem saberem de quê. Tudo augmentava pois a confusão de Henrique.
– Ora confesse – insistia cruelmente Magdalena – confesse que o está lisonjeando a exactidão das suas conjecturas.
Henrique teve emfim uma lembrança. Tirou do bolso a carteira, em que, horas antes, esboçára rapidamente a figura esbelta da morgadinha, rodeada das mulheres do povo, e mostrando-lh'a, disse:
– Veja v. ex.a se esse esboço, apesar da sua imperfeição, está de accordo com a estupida concepção, que eu formára.
Magdalena lançou a vista para a carteira e sorriu.
– Ah! desenha?
– Quando os modelos tentam, tenho d'essas ousadias. Os resultados são lastimosos, como estes. Perdôe-me o original, que julguei possivel copiar, o desacato, mas…
Magdalena fitou em Henrique um olhar penetrante.
– Isso que diz sabe-me a um galanteio. Devo advertil-o de uma coisa, sr. Henrique de Souzellas. Não ha nada tão mal empregado como uma fineza no campo. Tudo quer o seu logar. Em Lisboa talvez o achasse pouco delicado… ou pelo menos pouco amavel, se me não dirigisse d'essas phrases conceituosas e bonitas. Vive-se d'isso lá. Aqui acho-as affectadas e inuteis… Que quer? Influencias da scena. Ha tanta semceremonia no campo! Aqui todos nos tratamos como parentes: ha de vêr. Não repara como eu o recebo n'uma sala de jantar, sem nem sequer tirar os babeiros a estas creanças? Olhe lá que fizesse o mesmo em Lisboa…
– Então v. ex.a já lá esteve?
– Eu nasci lá e lá me eduquei.
– Ah! bem se vê.
– Ah? Ahi está um ah, que eu desejaria muito que me explicasse.
– Não me será difficil fazel-o. É que antes já de ouvir falar v. ex.a, só ao vêr certa distincção, certa elegancia de maneiras, conjecturei…
– Basta. É um ah portanto, que tem umas poucas de más qualidades.
– Devéras? Uma interjeição tão innocente!
– Pelo contrario, é a voz mais perfida e inconstante da nossa lingua; tudo exprime, a hypocrita. O seu ah é vaidoso, adulador e iniquo pelo menos. Pela vaidade castigue-o algum resto de modestia que ainda se abrigue no seu coração lisbonense; a adulação competia-me castigal-a, mas perdôo-lh'a porque quero ainda suppôr que é um symptoma da doença das cidades, a meu vêr, a principal doença, que o obrigou a procurar a aldeia; da iniquidade, da injustiça, que faz á educação que se pode dar na provincia, ha de convencer-se dentro em pouco, quando eu lhe apresentar minha prima Christina, uma rapariga, que tem vivido aqui sempre e que protesta contra essa sua opinião; possue tudo quanto pode dar de bom a educação das cidades, e, o que mais vale, aquillo que lá é tão facil perder-se depressa, uma candura adoravel. É a irmã mais velha d'estas creanças – accrescentou, pousando a mão na cabeça dos pequenos, que comiam e conversavam um com o outro.
– Mas v. ex.a…
– Perdão. Outra coisa. Já agora que entrei no caminho das admoestações, permitta-me mais uma, antes de perder o ar grave, que hei de por força ter. Não me sôa bem o impertinente tratamento de excellencia, que me dá. Essa excellencia está a pedir-me uma senhoria, pelo menos, e, confesso-lhe ingenuamente que me custaria a voltar na lingua uma palavra tão comprida.
– Como quer então que a trate?
– Eu sei?.. Olhe, uma ideia! Ha pouco não me comparou á Carlota de Goethe? Deixe-me pois adoptar uma lembrança d'ella. Está certo de que tratou o Werther por primo, a primeira vez que lhe falou? É um tratamento como outro qualquer; e entre nós mais justificado, porque sendo o sr. Henrique sobrinho direito de D. Dorothéa, e teimando minha tia Victoria, a mãe d'estes pequenos e de Christina, que D. Dorothéa é ainda uma especie de nossa tia arredada, e como tal a tratamos, nós a final de contas vimos a ser uma especie de primos tambem. Pelo menos assim o sustentou e decidiu hontem minha tia Victoria; e ha de vêr como por primo o tratará! É um tratamento menos incómmodo; eu chamar-lhe-hei primo Henrique; chamar-me-ha, se quizer, prima Magdalena, e desterraremos para sempre a antipathica senhoria e excellencia; concorda?
– Acceito e acho deliciosa a proposta. Adoptamos o principio falso, admittido pela fidalguia em Portugal, de que «os primos dos nossos primos, nossos primos são.»
– Fica pois ajustado?
– Fica ajustado.
– Bem. Mas que ia dizer ha pouco?
– Nem eu já sei… Ah!.. Perguntava se tinha estado muito tempo em Lisboa e o que a obrigou a vir viver para aqui.
– Isso é nem mais nem menos do que pedir-me a historia da minha vida. Seja; é um sacrificio inevitavel a quem se vê pela primeira vez. Deixe-me primeiro attender a estes pequenos, que eu principio.
E, depois de partir a cada creança uma fatia de queijo, a morgadinha principiou:
– A historia é curta e sem peripecias, tranquillise-se. Eu sou filha de Manuel Bernardo de Mesquita e…
Este nome era o de um dos principaes vultos politicos da época, e que então militava no campo opposicionista, sendo indigitado para ministro na primeira reforma ministerial, homem influente, de grande capacidade politica, tendo sempre advogado no parlamento as ideias mais liberaes, e militado no partido progressista.
Henrique de Souzellas, que conhecia todas as personagens de importancia no paiz, fitou Magdalena com olhar estupefacto: tão longe estava de encontrar alli a filha de um futuro ministro.
– Filha do conselheiro Manuel Bernardo! v. ex.a?
– Excellencia! Esquece-se da nossa convenção? Repare! É verdade. Não sabia que meu pae era d'aqui? Eu e meu irmão Angelo, que estuda actualmente n'um collegio em Lisboa, somos os unicos filhos de meu pae. Nasci, como disse, em Lisboa, mas as continuas enfermidades de minha mãe fizeram-nos vir para aqui viver na companhia d'ella; aqui mesmo morreu, e aqui está sepultada. O Angelo nasceu já n'esta casa. A morte de minha mãe deixou-me orphã aos doze annos, e incompleta a educação que ella principiára a dar-me e para a qual, se vivesse, ella só bastaria. Fui pois obrigada a voltar a Lisboa, onde continuei com mestra a minha educação. Mas, ao chegar á idade dos quinze annos, receiando meu pae que os ares da cidade desenvolvessem em mim germens de molestia, que porventura tivesse herdado, mandou-me outra vez para aqui, onde sempre passava alguns mezes no anno, e para onde me chamavam tambem habitos adquiridos em creança. Eu sou muito aldeã. Para aqui vim pois. A morte de meu tio, passado pouco tempo, impressionou profundamente a minha tia Victoria, que ficou desde então um pouco… um pouco… com pouca paciencia para olhar por as coisas domesticas. Isto creou-me novos deveres; havia aqui muitas creanças, estas duas, outras que estão lá dentro, e Christina, que era então creança tambem; occupei-me a ajudar minha tia.
– E tão admiravelmente, que a mais carinhosa mãe o não faria melhor.
– Dou-me bem com as creanças, dou. E a meu pae devo, em parte, o ter aprendido cedo esta sciencia. Porque é uma sciencia tambem.
– Então como