A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio

A Morgadinha dos Cannaviaes - Dinis Júlio


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que pouca vergonha é essa? Parecem-me um bando de patetas! Ora vamos! Já quietos. A culpa tem a Ermelinda, que já vos devia ter levado para a quinta. Ó Senhor, esta praga de criados, que nunca ha de fazer a sua obrigação!

      As creanças reprimiram um pouco mais as expansões de seus jubilos, mas ainda ficaram cantando a meia voz, em musica de composição d'ellas, o seguinte:

      – Vem o primo Angelo! Vem o primo Angelo! Ora viva, viva! Ora viva, olé!

      – Pschiu! Calae-vos! – bradou ainda D. Victoria; e voltando-se para Magdalena: – Mas então como se entende isso, Lena? Então o pae diz que vem…

      – Nas vesperas do Natal.

      – Sim, nas vesperas do Natal, e vae…

      – Depois dos Reis.

      – Sim; está bem; e… sim… e então o Angelo?..

      – O Angelo vem com elle. Quer vêr a carta?

      – Não, menina. Mas é preciso não fazer confusão… Então…

      – Não ha nada menos confuso… É só isto.

      – Sim; pois agora, sim; agora está bem claro. Calae-vos, diabretes! Ó meu Deus, que consumição! Mas então por que não entregou o criado ha mais tempo essa carta? Eh! não que vocês dizem que elles…

      – Ó tia, pois não ouviu que foi a mulher das cartas que se demorou, porque…

      – Historias! Não me venham para cá com esses contos. Vocês estão sempre promptos para desculpal-os. São elles…

      – Ó Lena, Lena – diziam as creanças – o primo Angelo não torna para Lisboa?

      – Ha de tornar.

      – Ora!

      – Olha lá, ó Lena – disse D. Victoria – sabes tu o que me lembra?.. Mas eu nem sei… com estes criados que tenho… Mas a mim lembra-me… uma vez que teu pae vem com o pequeno… e… está agora cá o primo Henrique… lembra-me a mim… mas, já digo, era se eu pudesse contar com os criados que temos… lembra-me, juntarmo-nos todos para consoar… A prima Dorothéa tambem, e aqui o primo; mas era se…

      Uma perfeita ovação acolheu o projecto; as creanças levaram as suas demonstrações de enthusiasmo até o delirio, penduraram-se ao pescoço, á cinta, ao avental da mãe, gritando todas a um tempo:

      – Ai, sim, mamã, sim; mande convidar a tia Dorothéa, mande! E ha de ficar em casa, sim? Olhe e… e arma-se o presepe… e… e… e havemos de cantar as janeiras… Mande, mande, mamã, por as alminhas; ora mande.

      D. Victoria fingia arrenegar-se com aquella pequenada, e erguia o braço, como para a fustigar asperamente, mas, contra a sua vontade, rompia-lhe o riso dos labios.

      – Saiam d'aqui! – exclamava ella, quando conseguiu estar séria. – Saiam!.. Não ouvem?.. Espera que eu vos falo… Ai, não fazem caso? Ora esperem… Marianna, já devias ter mais juizo… Então, Eduardo! Tu tambem? Não tem vergonha! Um homem quasi! Saiam d'aqui, estafermos!

      A ideia das consoadas em familia fôra uma ideia que a ninguem deixára impassivel. Christina, a timida Christina, não disfarçou um movimento de jubilo; as mãos ajuntaram-se-lhe instinctivamente, e raiou-lhe no olhar suave um fulgor pouco costumado.

      A propria Magdalena não se mostrou superior áquella tocante puerilidade.

      Approximou-se com viveza da tia, e beijando-a nas faces, disse-lhe affectuosamente:

      – Ora ahi está o que é muito bem pensado.

      – Pois sim, sim, mas o peor é… os criados – disse D. Victoria.

      – Quem fala n'isso? Na noite de Natal quem mais trabalha somos nós. Demais, teremos, para dirigir as tarefas, a Maria de Jesus, a criada da tia Dorothéa.

      – Isso é que é a perola das criadas! Oh! aquella prima Dorothéa, aquella sua tia, primo Henrique, é que teve felicidade! Mas dizes tu… Bem se importam os de cá com a Maria.

      – Não tem dúvida. N'aquella noite quanto mais barulho e desordem, melhor – aventurou-se a dizer Christina, com impeto revolucionario.

      – Ahi temos outra! Não, filha; isso é que não. Para barulhos é que eu já não estou. Então, não.

      – Está resolvido – disse a morgadinha, para cortar pelas divagações da tia. – Aqui o sr. de Souzellas – accrescentou, com maliciosa inflexão – fica desde já encarregado de transmittir á tia Dorothéa o nosso plano e, ao mesmo tempo, officialmente convidado.

      – Acceito da melhor vontade.

      – Não sei se o deverá dizer. É preciso que o avise de que n'aquella noite todos teem de trabalhar na cozinha; a ninguem se dispensa, um minuto, pelo menos, de collaboração nos guisados. Por isso veja lá…

      – Ó menina, tens coisas! – disse D. Victoria. – Deixe-a falar, primo.

      – Não é deixe-a falar. Eu não dispenso ninguem.

      – E eu prometto não me recusar. Promptifico-me a tornar detestaveis os pratos em que puzer a mão. Que mais querem?

      Foi alegremente acolhida a promessa.

      As creanças, familiarisadas já com Henrique, em quem tinham adivinhado um humor jovial, o que é sempre para ellas um motivo de attracção, trepavam-lhe já aos joelhos e dirigiam-lhe perguntas sobre perguntas, difficultando-lhe as respostas.

      – Havemos de jogar o rapa, não havemos?

      – Havemos de jogar, havemos – respondeu Henrique.

      – E o par ou pernão?

      – Tambem; tambem havemos de jogar o par ou pernão.

      – E?..

      – Tudo, tudo; havemos de jogar tudo.

      – Olhe: e sabe contar historias?

      – Sei tambem contar historias.

      – Então ha de contar-nos, que nós tambem lhe contamos a da Gata borralheira, a da Maria de pau e a da Menina com as tres estrellinhas na testa.

      – Ora, o sr. Henrique já as sabe – disse, fazendo-se sisuda, Marianna.

      – Pois não sei, não, senhora; quem lhe disse que eu as sabia? hei de querer ouvir isso tudo.

      – Ó meninos! – exclamou D. Victoria, que até alli estivera distrahida a discutir com Magdalena. – Então isso que é? Já para baixo. Ai, se lhes dá confiança, está arranjado, primo.

      – Deixe-os estar, minha senhora, este contacto de alegrias é salutar; pegam-se.

      – E não o diga a brincar – disse Magdalena – que tambem confio n'essas creanças para o curarem dos seus males.

      – Então devéras emprehendeu curar-me?

      – Com toda a certeza.

      – N'esse caso havemos de discutir devagar esse ponto de pathologia.

      – Não havemos, não, senhor. É mau medico o que soffre que o doente o interrogue sobre a molestia e o tratamento. O medico deve ser obedecido com fé, e cega.

      Christina que, havia muito, defronte de Magdalena, fazia esforços por lhe chamar a attenção, resolveu-se a falar-lhe.

      – Lena – disse ella – que te parece a lembrança que teve ha pouco a mamã?

      – A das consoadas? Excellente.

      – Não, menina, a do passeio á ermida.

      – Ah! Excellente tambem. Marquemos já o dia.

      – Quando queres?

      – Depois de ámanhã, que é quinta feira.

      – Seja.

      – Que diz,


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