Um club da Má-Lingua. Dostoyevsky Fyodor
amigo, e, graças á incuravel timidez que de mim se apodera assim que se trata de litteratura, a minha obra ficou na gaveta na qualidade de tentame sem seguimento.
Cinco mezes eram pois decorridos, quando em Mordassov se deu um acontecimento extraordinario.
Um dia, de madrugada, eis que chega o principe K… e vae hospedar-se em casa de Maria Alexandrovna.
As consequencias d'este acontecimento são incalculaveis. O principe passou apenas trez dias em Mordassov. Mas esses trez dias deixaram recordações fataes e inexpungiveis. Direi mais: o principe foi causa de uma verdadeira revolução n'esta nossa cidade. A narrativa da alludida revolução virá a ser, certamente, a pagina mais importante da historia de Mordassov. E é essa pagina que eu, após innumeras hesitações, me resolvi a offerecer, sob forma litteraria ao criterio do respeitavel publico.
A minha narrativa poder-se-ia intitular: "Grandeza e Decadencia de Maria Alexandrovna." Grande e seductor assumpto para um poeta.
II
Direi desde já que o principe K… não era um ancião centenario.
Á primeira vista, comtudo, ninguem podia deixar de pensar que ia reverter outra vez aos elementos, a tal ponto se achava gasto! Corriam em Mordassov as historias mais estranhas a respeito do dito principe. Affirmavam que estava um tanto ou quanto tinôco.
Effectivamente, parecia exquisito que um pomiestchik2 de uma das mais notaveis familias, dono de quatro mil almas, em posição de obter consideravel influencia na provincia, permanecesse enclausurado, tal qual um eremitão, na sua magnifica propriedade. Muitos que o tinham visto, seis ou sete annos atraz, por occasião da primeira vinda do principe a Mordassov, affirmavam que nesse tempo nem podia supportar a solidão nem tinha ainda aquelles seus costumes de eremita.
Eis os esclarecimentos que pude colher a seu respeito bebidos das mais seguras fontes.
Outrora – e onde irá isso! – o principe havia effectuado na sociedade um ingresso de aurora… Durante os annos todos da juventude levara vida airada, requestando as damas, esbanjando por vezes repetidas o seu dinheiro em viagens ao estrangeiro, cantando romanzas, fazendo trocadilhos; mas não se distinguia mediante uma intelligencia acima da marca. Em semelhante vida, não tardou em dar cabo do que tinha, e, quando chegaram os dias da senéctude, ficou sem um kopek. Aconselhou-lhe alguem que voltasse para a sua aldeia, que principiava já a ser vendida em hasta publica.
Aproveitou o conselho, e foi nessa occasião que veiu passar seis mêses em Mordassov. Agradou-lhe immenso a vida de provincia, e pelo espaço de seis mêses acabou de se "alimpar" em amorios com as mundanas provinciaes. Era aliás excellente pessoa, de um fausto principesco (em Mordassov o fausto é o signal caracteristico da mais alta aristocracia.)
As damas sobretudo não cessavam de se alegrar com um hospede encantador a tal ponto. Deixou entre nós curiosissimas recordações; entre outras exquisitices, contavam que o principe gastava a maxima parte do dia ao toucador. Parecia todo elle feito de pedacinhos enxertados. Scismavam onde e como fôra que elle se haveria decomposto d'aquella maneira. Usava chinó, bigode, suissas, e inclusivé uma pêra, tudo postiço até o minimo pellinho, e tudo preto como o proprio azeviche – uma lindeza! Levava todo o santo dia a pôr caio e carmim. Affirmavam que dispunha de um talento especialissimo em disfarçar as rugas do rosto por meio de umas mólazinhas escondidas com o chinó. Affirmavam ainda que trazia espartilho, havendo ficado sem uma costella ao saltar desastradamente de uma janella abaixo durante uma aventura amorosa, na Italia. Coxeava da perna esquerda, uma perna postiça de cortiça, affirmavam, havendo quebrado a verdadeira em Paris, em outra aventura. É possivel que houvesse exaggêro, mas o que é certo, é que o olho direito era de vidro: illudia completamente, aliás; ninguem diria que não era natural. Os proprios dentes eram artificiaes. Passava dias inteiros a lavar-se com aguas-garantidas, a perfumar-se, a encalamistrar-se. Ultimamente, comtudo, principiava a fazer-se velho e a tresler. Parecia estar prestes a terminar a sua carreira, e sabia toda a gente que se achava arruinado, – e eis que de repente lhe morre uma sua parenta muito chegada, senhora de muita edade, vivendo em Paris, e de quem não esperava herdar, em seguida a haver enterrado um mez, exactamente, antes de fallecer, o unico herdeiro. Eram quatro mil almas e uma soberba propriedade a sessenta verstas de Mordassov a reverterem no principe sem a minima partilha. Abalou desde logo para Petersburgo a fim de pôr em ordem seus negocios. Por occasião da partida, offereceram-lhe as damas um sumptuoso banquete por subscripção. Ha quem se lembre ainda de como, n'aquelle dia, o principe foi seductor e espirituoso! Era um tiroteio de calemburgos, de anecdótas extraordinarias. Prometeu voltar o mais breve possivel para a sua nova propriedade e jurou que na volta daria meza franca e uma festa – bailes e luminarias – que nunca havia de ter fim. Depois da sua partida, ficaram as senhoras um anno a falar da tal promettida festa e impacientes á espera do encantador velhinho. Organizavam até excursões a Dukhanovo, a aldeóla do principe, onde se admirava um antigo solar acastellado, um parque adornado de acacias a imitar leões, colinas artificiaes, lagos em que navegavam barquinhos tripulados por turcos de madeira, a tocar flauta, pavilhões de Mon-Plaisir, e quejandos attractivos.
Até que por fim veiu o principe, com grande espanto e não menor decepção de toda a gente, nem sequer passou por Mordassov e foi encerrar-se em absoluto isolamento em Dukhanovo. Correram boatos singularissimos. A datar d'esse momento, torna-se obscura e phantastica a historia do principe. A principio constou que lá por Petersburgo lhe não tinham corrido bem os negocios, que os herdeiros, em vista do seu estado senil, queriam nomear-lhe um conselho judicial receando que voltasse a esbanjar os seus bens. Ainda mais: accrescentavam que aquelles ávidos caçadores de heranças tinham querido internál-o n'uma casa de saude! Afortunadamente para o principe, um seu parente, personagem de summa importancia, saiu em sua defêsa, provando á evidencia que o pobre homem, semi-morto e todo elle artificial, não estava para muita dura, certamente. E que n'essa conformidade os seus bens viriam a reverter nos herdeiros sem que estes se vissem na necessidade de recorrer á casa de saude. Eis o que se diz. São compridinhas as linguas lá em Mordassov. Tudo isto havia assustado o principe, a tal ponto, que se lhe tinha demudado o genio, descambando em eremitão. Por mera curiosidade, vieram felicitál-o varios Mordassovenses: e ou não foram recebidos, ou se o foram foi de modo um tanto exquisito. O principe nem mesmo reconheceu, ou antes, não quiz reconhecer os seus amigos de outrora.
O proprio governador o foi visitar, mas voltou pelo mesmo caminho dizendo que o principe estava tinôco. D'alli em deante notaram que o governador punha uma cara de palmo, assim que lhe falavam na jornada a Dukhanovo… Indignavam-se as senhoras. Até que por fim se veiu a saber uma coisa capital; o principe vivia submettido á tutella de uma figurona por nome Stepanida Matveiévna, – Deus sabe que casta de mulher! – que tinha vindo lá de Petersburgo, velha, obêsa, usando constantemente o mesmo vestido de cassa, e sempre com um mólho de chaves na mão. O principe obedece-lhe em tudo e por tudo e não se atreve a dar um passo sem a consultar. Ella, lava-o com suas proprias mãos, apaparica-o, passeia-o e entretem-n'o, como se fôra um néné; em conclusão, é ella quem bate com a porta na cara aos parentes que principiam a saber o caminho de Dukhanovo… Foi muito discutida, sobretudo entre as senhoras, tão incomprehensivel ligação. Accrescentavam que Stepanida Matveiévna regia com plenos poderes, e sem ter quem lhe fosse á mão, a totalidade dos bens do principe. Substitue feitores, creados, arrecada os rendimentos; é aliás boa a sua administração, e os camponêzes não vêem outra coisa. Com respeito ao principe, este nem já arreda um passo do toucador, a ensaiar chinós, pêras postiças, casacos. Uma vez por outra, joga ás cartas com Stepanida Matveiévna; de vez em quando, dá o seu passeio n'uma egua inglêsa muito mansa: Stepanida Matveiévna acompanha-o sempre em carruagem fechada, prompta á primeira voz, visto como o principe só monta a cavallo por garridice e mal se pode ter em cima do selim. Acontece-lhe tambem o sair a pé, embrulhado n'um sobretudo, com um chapéu de palha enterrado na cabeça, um lenço de mulher ao pescoço, um monoculo no olho e pendurado na mão esquerda um açafate para recolher cogumelos e flôres campestres. Stepanida Matveiévna, vae-lhe seguindo as pisadas, levando á tréla dois latagões de dois lacaios; e um pouco mais atráz, uma carruagem. Se calha encontrarem um mujik que pára e tira o bonné para lhe fazer a sua contumélia dizendo: "Bom dia, paezinho principe. Nossa Excellencia,
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Proprietario territorial.