Fanny: estudo. Feydeau Ernest
nunca.
Era mulher até ás pontas dos cabellos!
III
Chegava emfim o dia suspirado! Erguia-me de madrugada, e todo me dava ao infantil prazer de arrumar eu mesmo o meu quarto. Decorava-o de novas flôres; baixava os transparentes de brocatol côr de rosa, enramalhados de flôres, a fim de quebrar com suavidade o brilho da luz, que os coloria magicamente. Refegava artisticamente os cortinados de cassa e alizava com as mãos o tapete de cadarço do meu leito. Regulava o relogio, cujo pendulo tão moroso então me parecia. Sobre um bofete de páo das ilhas, dispunha em bandeijas chinezas, dôce de fructa, pastelaria, e em roda calices de Bohemia, e alguns frascos empoeirados de Marsalla. Mandava o creado passear até á noite, e ficava eu senhor absoluto do meu elegante recinto. Ahi todo me agitava livre como a ave entre ramagem dos bosques desertos, arredondando e brunindo com o peito inquieto o dôce ninho dos seus amores.
Que cuidados me não dava o prevenir os menores desejos da mulher que eu estremecia! com minhas mãos pregava os alfinetes no pregador de veludo. Tirava do estojo de marroquim escarlate o pente de dentes escamosos que ella usava para alisar os cabellos descompostos pela pressão de meus dedos tremulos. Atiçava o dôce fogo que se avermelhava entre as cinzas. Aproximava do fogão a cadeira d'ella; trazia do divan a almofada em que ella punha os pés, e eu os joelhos, na attitude dos devotos contemplando seu idolo. E quando estava assim disposto tudo, quando o ponteiro d'ouro, avisinhando-se do numero escolhido, parecia dizer-me: «Vais ouvir soar a hora de teu prazer,» mais inquieto e agitado que nunca, ia eu pé ante pé, da porta á janella, como vae e vem o cão fiel, atormentado pela impaciencia, adivinhando o andar de seu dono.
E eu dizia comigo: «A esta hora, tambem ella lança a furto os olhos ao seu relogio. Sabe que a espero. Agora, deante do espelho, aperta na barba o broche da capa de veludo. Incaracola os cabellos rebeldes sobre a fronte pura. Involve as espadoas no chalé escuro, e aperta-o sobre o peito com o alfinete de camapheu. Veste as luvas, e irrita-se. Sobre os olhos negros accumula as dobras do véo tambem negro. Atravessa as salas desertas. Passa. Roda a chave. Sae. Desce. Corre cozida com as casas. Vou vêl-a!
E depois, mais nada… Oh! que longo é o tempo quando se espera e desespera! Se algum estorvo sobreviesse! uma visita, o capricho d'um filho! Que desgraçado sou! não virá ella? Já se demora!
E, com tudo, era-me tão dôce recebel-a aqui, uma vez mais, neste quarto tão bem disposto para ella! Tão dôce o recebel-a nos braços, no limiar da porta, e arrebatal-a para escondel-a como um thesouro! Tão bom tocar-lhe as mãos, os cabellos, e vêl-a emfim fitar-me com seus olhos lindos, e ouvil-a dizer: «tu» com aquella voz muzical!
IV
Chegava ella emfim! Encostado ao alizar da porta entre-aberta, escutava eu o fremito do seu vestido, e o ranger das botinas sobre o tapete da escada. Entrava ella, roixa de frio, offegante, com as pestanas lagrimosas, e, sem erguer o véo, sem dizer palavra, atirava-se-me toda ao peito, cingia-me o pescoço, e, timorata e assustada como um passarinho, applicando o ouvido, escutava, convulsiva, o menor rumor que se fazia na casa ou na rua.
E, quando emfim os mêdos se aquietavam, e que ella se decidia a transpor o limiar, era uma como visão deslumbrante que alagava em ondas de luz a camara fechada. Os menores objectos, com a presença d'ella, eram-me thesouros inestimaveis. Tudo parecia animar-se então, como, nos primeiros dias da primavera, despertam as florestas que dormiam sombrias e taciturnas.
Algumas vezes, comtudo, festivos raios do sol, coando-se pelas juntas dos cortinados, atravessavam o espaço, e quebravam-se ao fundo da alcova, sobre a superficie polida d'um espelho. As flôres das jarras, postas deante das janellas, desfolhavam uma a uma, juncando o tapete das suas frescas petalas. Segredando, de mãos dadas, palavras incoherentes, contemplava-m'o-nos como arrobados, absorvidos n'uma commoção deliciosa e entranhada que nos adestringia docemente o coração, e nos marejava de lagrimas os olhos. Como nosso amor, como nossa alegria, eram infinitas estas expansões; nossos pensamentos, porém, não ultrapassavam as paredes discretas do quarto silencioso. Para nós o mundo todo estava alli.
E como era aquelle devorar-m'o-nos de caricias! Que suave energia a dos braços! que avidez nos beijos! que febril tremor nos gestos em quanto eu lhe disputava em silencio os vestidos descompostos que ella retinha ás mãos ambas, pallida d'um vago susto! Frenetico, de joelhos, cingia-a pela cintura quebradiça, e ella, oscillante entre os meus braços compressores, tomava-me a face entre as suas mãos, affastava-a com meiguice, encarava-me, e voltava o rosto como se meus olhos a aterrassem.
E eu, como esquecido de minha dignidade, arrastava-me aos pés d'ella, beijando-lh'os nus. Oh! se eu morrêra alli, collados os labios áquelles pés infantinos, brancos e rosados, que ella poisava n'um tapete de plumas de cysne, a tiritar entre seus véos como o anjo da inquietação meio involto na plumagem de suas azas!
V
Passado o primeiro momento da vertigem, parecia-lhe a ella coisa natural o estar alli, ao tempo que eu a comprimia com ardor feroz. E então, no explendor de sua desordem, desatadas as tranças, nuas as espaduas, nus os braços, frios e viscosos os labios, mais muda, mais seria, mais enleada que eu mesmo, estava tão senhora sua como se estivesse recostada na cadeira de veludo ao pé do fogão de sua casa. Eu não sei o que ella não fizesse com as mais naturaes e dignas maneiras! Nada a surprehendia nem a molestava.
VI
De cada vez, tinhamos sempre que trocar um mundo de pensamentos novos. Recontava-m'o-nos fadigas da espera, tristezas da auzencia, aspirações da esperança, e o quanto era consolativo para amantes separados, o pensar incessante um no outro. Fanny sobre tudo se deixava levar desta união espiritual com toda a expansão d'uma alma juvenil. Recebia as confidencias da minha ternura, como efluvios de incenso, que a immergiam n'uma especie de torpor dulcissimo. Com mudos raptos de gratidão, rosadas as faces, palpitantes as azas nazaes, sorrindo no olhar embaciado, maravilhava-se ella da abundancia de minhas palavras, como imagens graciosas que volitassem dos meus labios. Não a fatigava o ouvir-me. – Mais, mais, ó meu Roger! – dizia ella. E, encostando o cotovelo á almofada, inclinada a fronte na mão, requebrado o corpo, os pés a resvalarem, anediando-me a testa e os cabellos, olhava-me com tanta fixidez, como se quizesse esmirilhar os mais subtis lineamentos da minha alma. Entretanto, eu, de joelhos, com as mãos juntas, sorria de prazer como creança amimada, e cuidava que assim era o identificarem-se nossas almas n'um apertar vago e dôce, com estremecimentos voluptuosos.
VII
No instante em que ella ia sahir, era então o irromper minha alma em explosões de amor e angustia. E ella, pensativa, fitava nos meus, com ternura, seus olhos azues e lympidos. Tomava-me affectuosamente as mãos, que eu lhe disputava, voltando-me arrufado. Fazia-me graciosamente sermões maternaes. Acariciava-me com bondade, abraçava-me, ia e vinha para abraçar-me ainda. – Tornarei a vêr-te? – exclamava eu com tristeza. – «Cala-te, Roger,» – respondia-me, abafando a voz n'um beijo. Por fim, comprimia-a longo tempo ao coração; e, quantas vezes, ao apartar-m'o-nos assim, sentiamos calidas lagrimas a cahirem nos labios de ambos!
VIII
A minha vida ia com ella. Melancolicamente encostado ao peitoril de minha janella, via-a por entre as fisgas das persianas, passar na rua.
Lá ia vagarosa, simples, tranquilla, bella. As duas fimbrias de seu véo fluctuavam-lhe docemente sobre os hombros, acarinhando-lhe de cada lado a face.
A barra do vestido, relevada de folhos de seda, sussurrava com o movimento. Com ambas as mãos ajustadas sobre a cintura, comprimia as dobras da cachemira que a involvia desde a nuca até ao artelho. Nunca se voltava. Encostava-se ao longo das paredes para evitar o embate dos caminheiros. Emfim, chegando ao angulo da rua, desapparecia; e eu atirava-me sobre o leito, escondia nas mãos o rosto, avocando, hallucinado, todas as minhas remeniscencias esparsas para ainda assim me illudir com possuil-a.
IX
A primeira vez que ella ahi veio, não se espantou, mas examinava tudo o que a rodeava, e em tudo bulia, com certo acanhamento. Havia lá espadas de combate dispostas em tropheu. Lembra-me que ella reparou n'isso.
Tambem