Fanny: estudo. Feydeau Ernest
meu pobre e querido filho!»
E desde ahi, não tornou mais a fallar, por si mesma, neste assumpto.
Eu, porém, pensava n'elle incessante e dolorosamente, sem poder abster-me de o recordar. Affagava-me então ella, e reprehendia-me. «Perdes o tempo» – dizia-me, sorrindo-me, e abraçando-me, se me eu detinha muito na exposição das minhas tristezas. E seus braços se me inroscavam no pescoço com ameigadora volupia, com a fascinação dos olhos me violentava a olhal-a, com graciosa e morbida ternura collava aos meus seus labios. Mas tudo em vão. Já se não franziam meus labios para saborear beijos d'amor; agora era o confrangerem-se soluçando gemidos.
XVII
Desde este funesto dia comecei a soffrer grandes torturas. A imagem daquelle homem incrustara-se-me na memoria, e, por mais que eu fizesse, não havia dilil-a de lá. Póde ser que aos olhos de toda a gente fosse elle ridiculo, mas aos meus não cuidei que o fosse. Para mim, era sinistro, terrivel, e, cada noite, espavorido, via-o, em sonhos, trucidar carniceiramente o espectro da minha felicidade.
O feliz era elle, que tudo ignorava. No drama começado por transportes de amor, e agora prolongado a travez de anciedades, terrores, desespêros, não representava elle: tão prudentes tinhamos nós sido!
Atroz mudança de papeis! Era eu que tinha ciumes d'elle! O espoliador soffria da posse pela posse. Não lhe restava mesmo o recurso de excitar as suspeitas do espoliado para o fazer aquinhoar das torturas!
E era-me força desconfiar e occupar-me d'elle!
A meu pesar, para evital-o, cumpria-me ser ardiloso como a lebre. Este papel de fugidiço, de temorato, degradava-me ao livel dos covardes. Meu Deus! se eu a não amasse!..
Em comparação dos males que deviam vir, aquelles nada eram. Principiava a caminhar n'uma senda espinhosa, cavada de abysmos, e não sabia que flagellações me urgia supportar antes de chegar ao termo. Desde então, se deante do fogão, no meu quarto silencioso, eu tentava divertir a alma da dôr presente, levando-a ás memorias de amores passados; ou esporeando á redea solta o meu cavallo, arriscava cem vezes a vida para quebrantar o corpo de fadiga, a fim de reverter sobre elle a fadiga de meu cerebro, ou se pedia á orgia o esquecimento, bebendo a grandes tragos o vinho que nunca me valeu uma gota d'agua do Léthes; ou se, n'um só lanço de azar, expunha os meus haveres para soffrer sequer uma sensação diversa daquella que eu execrava; ou, se emfim, envolvido nos cortinados da minha alcova, eu passava as minhas noites inteiras a lastimar-me, invocando os phantasmas dos seres adorados que perdi: nunca, nem no sonho, nem no perigo, nem na embriaguez, nem no jogo, nem ainda na remeniscencia da minha mãe morta, eu pude conseguir estrangular a serpente que me atassalhava o coração. Comigo, a visão fatal sorria aos meus amores juvenis; comigo, cavalgava ella o meu cavallo espantado; zombeteando, molhava ella os labios palidos no meu copo; no copo do jogo fazia ella o tilintar dos dados; comigo, emfim, meditava ella em minha mãe. Á flôr de minhas recordações todas, scenas incantadoras, affectuosas, terriveis, que eu restaurava com a memoria, do fundo de minha alma, surdiam incessantemente outras lembranças, outras imagens que espancavam aquellas.
E não havia remedio senão acolher aquellas abominaveis lembranças; affrontar de rosto com aquellas funestas imagens, porque era a isso violentado; venciam-me, e eu então, encarava-as!
Havia ahi alguma coisa horrida, humilhadora, e angustiadissima.
Só quem ama póde formar idéa vaga de minhas agonias. Era tudo claro e patente: nenhum refugio para a duvida! E eu me reprezentava a mulher amada, linda, elegantemente vestida, meiga, candida, assentada ao angulo do fogão em sua sala, ou á meza, no logar de honra, em face de seu marido, rodeada de amigos, e filhos. Affavel sempre, com attenções delicadas para todos, attenções que são a magica linguagem da graça do coração. E para o dominador mais carinhoso que para os mais! Era-lhe forçoso prevenir suspeitas de homem tão prespicaz: como não seria ella carinhosa? E, a de mais, entre elles existia a communidade de tantas coisas – interesses, filhos, viverem juntos, a toda a hora, alegres ou tristes, sem nunca se apartarem!.. E quantas expansões naturaes!.. Era elle o leão dominador daquella adoravel existencia; e eu, o lobo temido, e salteador, de olhar ferino, esbaforido, que, de tempo a tempo, a risco de perigos mil, exposto a humilhações degradantes, a uma bala, o roubava nas trevas, em quanto elle dormia, alguns restos do seu quinhão.
Oh! era isto o que me humilhava muito; mas aqui vereis o que me fazia pedaços o coração. Eu não podia suspender o trabalho indefesso de minhas evocações. Completava-as, ruminando minhas dôres, com satanico prazer. Então se mudava a scena, e figurava-se-me Fanny, por noite, só por só com elle, depois da saida dos filhos, na alcova fechada, onde o chá fumegava nas chavenas, ao suave clarão da lampada, ao pé do lume que docemente crepitava nas cinzas quentes. E ella a olhal-o com aquelles mesmos olhos que eu amava tanto! E a conversar com elle, amavel, facil, fallando pouco para lhe deixar o prazer de fallar, submissa como convém á mulher quando é formosa, e o dominador é forte. E não cuideis que eu ficasse n'estas imagens de seductora intimidade.
Não podia. Continuava-as, exaggerava-as… que sei eu!.. ajuntava-lhe outras. Era forçoso que assim fosse, assim devia ser. Era tarde, agonisava a chamma no fogão obscuro, a lampada mortiça abafava os seus lampejos no quebra-luz, callavam-se todos os rumores na casa e na rua; o passo sonoro do caminheiro retardado, marcava a hora do repouso e do prazer. De mais, meninos e creados, tudo estava na cama. Estavam elles sosinhos. E eram esposos!..
XVIII
Chegado até este ponto, tornava-me pallido. No mais recondito de minha alma, alguma coisa se estorcia e agonisava em convulções desesperadas. Estas imagens, evocadas cada noite, tornavam-me mais desgraçado, que se eu tivesse visto a mulher adorada cuspida em minha presença. Erguia-me, e via as horas; depois, despregava a rir, como doido, ou, involvendo a cabeça nos braços, lançava-me a chorar sobre o leito.
XIX
De madrugada emergia do meu pesadelo, mais quebrantado que o ferido d'um tétano.
E se me arrastava á janella, para aspirar um pouco de ar puro, a mesma pergunta me desabrochava nos labios calcinantes como flôr venenosa:
Por que o amou ella n'outro tempo? Que ella o amou, já m'o disse; foi por elle tirada á familia que a não queria ligar a um homem sem posição e sem riqueza. Enriqueceu depois, por que é energico e paciente. Sabe querer. Mas por que o amou ella? E, depois, por que me ama ella hoje a mim? Somos tão differentes um do outro!
Um dia, finalmente, á força de moer n'esta ideia, e joeirar-lhe no espirito os venenos todos, julguei que ia penetrar o proceder de Fanny. Lembrando-me quanto ella era sensivel ás caricias; figurando-me as scenas mais deleitosas do nosso amor, e comparando-me ao marido, invergonhei-me e alguma coisa mais acre que o desgosto, mais amarga que o despreso, mais peçonhenta que o odio, me subiu do coração aos labios.
– Ora ahi está por que ella me ama hoje – me disse eu sacudindo a cabeça. Veio depois auxiliar-me a analyse mais uma vez, mas para ferir-me covardemente com uma nova punhalada. – Ama-me para variar – disse eu amargurado – para satisfazer, um contrario exagerado, um desejo mais sentimental, mais delicado. A não ser para completar o seu ideal… accrescentei eu sem reflectir na crueldade da supposição.
Mas em tal caso – grito eu com terror indisivel – eu não sou para ella mais que metade d'um homem! Encho apenas metade d'um coração! Fui medido. Acharam-me incompleto. Sou escassamente uma addição! Não passo d'um complemento.
XX
Algumas vezes fugia de casa como d'um carcere, e ia espairecer minhas interminaveis meditações na multidão que peja os passeios. Achando-me entre pessoas felizes, indifferentes, occupadas; saboreando, a meu pezar, os primeiros effluvios balsamicos da primavera, cessava de julgar-me tão absolutamente miseravel, e classificava de creancice as mais monstruosas hallucinações – É o ciume – dizia – que me torna absurdo. Encontrando a cada passo tantas mulheres bonitas, elegantes, pelo braço de cavalheiros, os quaes com ar de aborrecidos, volteam os olhos em deredor, e escassamente lhes respondem, accrescentava eu: – Quantas mulheres habitam sob as mesmas telhas com seus