Memorias de José Garibaldi, volume I. Garibaldi Giuseppe
que o meu appetite não tinha nada de extraordinario, porque não tinha comido havia dezoito horas e que o achar-me alegre e satisfeito era por haver escapado talvez á morte no meu paiz – e em França á prisão.
Tendo-me adiantado tanto, não podia fazer segredo do resto. O estalajadeiro e sua mulher pareciam-me tão boas pessoas que lhe contei tudo.
Então, com grande espanto meu, o estalajadeiro ficou pensativo.
– Que tem? lhe perguntei.
– É que depois da confissão que acaba de fazer, respondeu elle, não tenho remedio senão prendel-o.
Dei uma grande gargalhada porque não tomei este dito ao serio, e demais se o fosse eramos um contra um, e não havia no mundo um unico homem que eu temesse.
– Bem, disse eu, mas como julgo que não tem muita pressa, peço-lhe que me deixe ceiar com todo o descanço, pois temos muito tempo depois do dessert. E continuei comendo sem mostrar a mais leve inquietação.
Infelizmente vi bem depressa que se o estalajadeiro tivesse necessidade de ajudantes para realisar os seus projectos, esses ajudantes não lhe faltavam.
A sua estalagem era o logar aonde toda a mocidade da villa se reunia ás noutes para beber, fumar, e fallar da politica.
A sociedade do costume começava a reunir-se, e bem depressa estavam na estalagem mais de doze mancebos, jogando as cartas, bebendo e fumando.
O estalajadeiro não tornou a fallar na minha prisão, mas tambem não me perdia de vista.
É verdade que não tendo eu a mais pequena mala, não tinha cousa alguma que lhe assegurasse o pagamento da minha despesa.
Como tinha na algibeira alguns escudos, fiz barulho com elles, o que pareceu socegar o meu homem.
No momento em que um dos bebedores acabava, no meio dos applausos geraes, de cantar uma canção, ergui o copo que tinha na mão:
– Agora pertence-me, disse eu:
E comecei a cantar o Deus dos bons.
Se não tivesse outra vocação teria podido fazer-me cantor, porque tenho uma voz de tenor que cultivada alcançaria uma certa extensão.
Os versos de Beranger, a franquesa com que eram cantados, a fraternidade do estribilho, a popularidade do poeta, arrebataram todo o auditório.
Fizeram-me repetir dois ou tres couplets e abraçando-me todos quando acabei, gritaram – Viva Beranger! Viva a França! Viva a Italia!
Depois de haver obtido tal successo era escusado pensar em prender-me; o estalajadeiro conheceu isso porque nunca mais me fallou de tal, ignorando eu por isso se elle fallava seriamente ou se zombava.
Passou-se a noite a cantar, jogar e a beber; e ao romper do dia todos os meus companheiros da noite se offereceram para me acompanhar, honra que acceitei sem difficuldade: caminhámos juntos seis milhas.
Com toda a certeza Beranger morreu sem saber o grande serviço que me prestou.
VII
ENTRO AO SERVIÇO DA REPUBLICA DO RIO GRANDE
Cheguei a Marselha sem incidente, vinte dias depois de ter deixado Genova.
Engano-me, um incidente, que li no Povo Soberano, me succedeu.
Estava condemnado á morte.
Era a primeira vez que tinha a honra de ver o meu nome impresso em um jornal.
Como desde então era perigoso continuar a usar d'elle, comecei a chamar-me Pane.
Fiquei alguns mezes occioso em Marselha, aproveitando-me da hospitalidade do meu amigo José Paris.
Passado algum tempo consegui ser admittido como segundo commandante no navio Union, capitão Gozan.
No domingo seguinte achando-me pelas cinco horas da tarde á janella com o capitão, seguia com a vista um collegial em ferias que se divertia no caes de Santo André a saltar de uma barca para outra, até que faltando-lhe um pé caíu ao mar.
Estava vestido á domingueira, mas apesar d'isso, ouvindo os gritos dados pela desgraçada creança arrojei-me á agua completamente vestido. Duas vezes mergulhei inutilmente, mas á terceira fui mais feliz porque o agarrei por debaixo dos braços, conseguindo trazel-o sem difficuldade até á praia. Uma grande quantidade de povo ahi estava reunida, sendo eu recebido no meio dos seus applausos e bravos.
Era um rapaz de quatorze annos que se chamava José Bambau. As lagrimas de alegria e as bençãos de sua mãe pagaram-me largamente do banho que tinha tomado.
Como o salvei debaixo do nome de José Pane, é provavel que se é ainda vivo, nunca soubesse o verdadeiro nome de seu salvador.
Fiz na Union a minha terceira viagem a Odessa, depois á volta embarquei-me em uma fragata do bey de Tunis. Deixei-a no porto de Goletta, voltando a Marselha em um brigue turco. Quando cheguei a esta cidade encontrei-a quasi no mesmo estado que M. de Belzunce a viu em 1720 quando ali grassava a febre negra.
O cholera fazia então estragos horriveis.
Na cidade só existiam os medicos e as irmãs da caridade, quasi todo o resto da população havia desertado e viviam nas quintas dos arrebaldes. Marselha tinha o aspecto d'um vasto cemiterio.
Os medicos pediam os benevolos. É assim, como se sabe, que são chamados nos hospitaes os enfermeiros voluntarios.
Offereci-me ao mesmo tempo que um rapaz de Trieste que voltou de Tunis comigo. Estabelecemo-nos no hospital, e ahi partilhavamos as vigilias.
Este serviço durou quinze dias. No fim d'este tempo, como o cholera diminuiu de intensidade e achava uma occasião favoravel de ver novos paizes, embarquei-me, como segundo no brigue Nantonnier, de Nantes, capitão Beauregard, que se achava proximo a partir para o Rio de Janeiro.
Muitos dos meus amigos me teem dito que antes de tudo sou poeta.
Se para ser poeta é necessario escrever a Iliada, a Divina Comedia, as Meditações de Lamartine, ou os Orientaes, de Victor Hugo, eu não sou poeta: mas se para o ser é necessario passar horas e horas a procurar nas aguas asuladas e profundas do mar os mysterios da vegetação submarina, se é necessario ficar em extase diante da bahia do Rio de Janeiro, de Napoles ou de Constantinopla, se é preciso pensar no amor filial, nas recordações infantis, ou n'um amor juvenil no meio das ballas e bombas, sem pensar que esse sonho ha-de acabar pela cabeça ou por um braço quebrado – então sou poeta.
Recordo-me que um dia, durante a ultima guerra, não dormindo havia quarenta horas, e morto de cançasso costeava Urbano e os seus doze mil homens com os meus quarenta bersaglieri, os meus quarenta cavalleiros e um milhar de homens armados na sua maioria pessimamente, seguia por um pequeno atalho do outro lado do monte Orfano com o coronel Turr e cinco ou seis homens, quando parei repentinamente, esquecendo a fadiga e o perigo para ouvir um rouxinol.
Era uma noite magnifica. Sonhava ouvindo este amigo de infancia, que um orvalho benefico e regenerador chovia em torno de mim. Os que me rodeavam julgaram ou que hesitava no caminho a seguir, ou que ouvia ao longe troar os canhões, ou os passos da cavallaria inimiga. Não! Escutava um rouxinol que ha mais de dez annos, póde ser, eu não tinha ouvido. Este extase durou não até que os que me rodeavam me tivessem repetido duas ou tres vezes «General, ahi está o inimigo» mas até que este rompendo o fogo fizesse desapparecer o meu encanto.
Quando depois de ter costeado os rochedos graniticos que occultam a todas as vistas o porto, que os indios na sua linguagem expressiva chamam Nelheroky, quer dizer, agua occulta, quando depois de haver passado a estrada que conduz á nova bahia socegada como um lago; quando na margem occidental d'esta bahia, vi elevar-se a cidade chamada Paus d'Assucar, immenso rochedo conico que serve não de pharol, mas de balisa aos navegantes, quando appareceu em volta de mim essa natureza luxuriante de que a Africa e a Asia só me tinham dado uma fraca idéa, fiquei maravilhado do espectaculo esplendido que meus olhos contemplavam.
Foi no Rio de Janeiro que a minha boa estrella fez com que eu encontrasse a coisa mais