Memorias de José Garibaldi, volume I. Garibaldi Giuseppe
em sua perseguição um navio de guerra a vapor, que trouxe as armas e aprisionou os soldados.
Ramorino não vendo chegar a tropa que se lhe devia juntar, em logar de proseguir na sua marcha sobre S. Julião, começou a costear o lago.
Muito tempo se passou sem saber aonde iam. Não se conheciam as intenções do general: o frio era intenso, e os caminhos estavam em um estado deploravel.
Exceptuando alguns polacos, a columna era composta de voluntarios italianos, impacientes pela hora do combate, mas que cançavam facilmente pela extensão e difficuldade do caminho.
A bandeira italiana atravessou algumas pobres villas, nenhuma voz amiga a saudou, não encontrando por toda a parte senão curiosos ou indifferentes.
Fatigado pelos seus largos trabalhos, Mazzini que tinha trocado a penna pela espingarda, seguia a columna: soffrendo uma febre ardente, arrastava-se por aquelles asperos caminhos com a dôr escripta na fronte.
Já por varias vezes tinha perguntado a Ramorino quaes eram as suas intenções, e que caminho seguia.
As respostas do general nunca o haviam satisfeito.
Chegaram a Carra e detiveram-se para ahi passar a noite; Mazzini e Ramorino achavam-se na mesma camara.
Ramorino estava embrulhado na sua capa; Mazzini fixava sobre elle o seu olhar sombrio desconfiado.
– Não é seguindo este caminho, disse elle com a sua voz sonora, tornada mais vibrante pela febre, que temos a esperança de encontrar o inimigo. Devemos ir ao seu encontro, e se a victoria é impossivel, provemos ao menos á Italia que sabemos morrer.
– Não nos faltará nem o tempo, nem a occasião, respondeu o general, para affrontar perigos inuteis: considero como um crime o expôr inutilmente a flôr da mocidade italiana.
– Não ha religião sem martyres, respondeu Mazzini, fundemos a nossa, ainda que seja com o nosso sangue.
Mal acabava de pronunciar estas palavras, que o estrondo da fuzilaria se ouviu.
Ramorino deu um salto. Mazzini pegou n'uma carabina, agradecendo a Deus o ter-lhe feito encontrar o inimigo. Mas este era o ultimo esforço da sua energia: a febre devorava-o; os seus companheiros correndo de noite pareciam-lhe fantasmas, a fronte escaldava-lhe, e a terra tremia-lhe debaixo dos pés. Depois de alguns minutos de afflicção caíu desmaiado.
Quando voltou a si achou-se na Suissa, aonde os seus companheiros o tinham conduzido com grande trabalho: a fuzilaria de Carra tinha sido um rebate falso.
Ramorino declarou então que tudo estava perdido: recusou-se a ir mais longe e ordenou a retirada.
Durante este tempo uma columna de cem homens, da qual faziam parte um certo numero de republicanos francezes, partiu para Grenoble, e atravessou a fronteira da Saboya.
O perfeito francez preveniu as auctoridades sardas: os republicanos foram attacados de noute e de improviso, ao pé das grutas de Cobellos, e dispersos depois d'um combate que durou uma hora.
N'este combate os soldados sardos fizeram dois prisioneiros. Angelo Volantieri e José Borrel: conduzidos voluntariamente a Chamberg e condemnados á morte, foram fuzilados na mesma terra aonde ainda estava fumegante o sangue de Elfico Tolla.
Por este modo terminou aquella expedição.
VI
O DEUS DOS BONS
Tinha tambem a minha parte a cumprir no movimento que devia ter tido logar, e havia-a acceitado sem discutir.
Havia entrado no serviço do estado como marinheiro de primeira classe da fragata Eurydice. A minha missão era alcançar proselytos para a nossa causa, e para conseguir este fim tinha feito tudo quanto me era possivel.
Dado o caso que o nosso movimento tivesse bom resultado, devia com os meus companheiros apoderar-me da fragata e pôl-a á disposição dos republicanos.
Não havia querido, impellido pelo ardor que sentia, limitar-me a este papel. Tinha ouvido dizer que um movimento teria logar em Genova, devendo por esta occasião apoderarem-se do quartel dos gendarmes situado na praça de Sarzana. Deixei aos meus companheiros o cuidado de se assenhorearem do navio, e proximo da hora em que devia rebentar a rebellião de Genova deitei uma canôa ao mar e desembarquei na alfandega, gastando poucos momentos a chegar á praça de Sarzana, onde, como já disse, estava situado o quartel.
Esperei quasi uma hora, mas nenhum indicio de rebellião appareceu. Bem depressa ouvi dizer que tudo estava perdido, havendo-se posto os republicanos em fuga: dizendo-se tambem que varias prisões haviam sido feitas.
Como não me tinha engajado na marinha sarda senão para ajudar o movimento republicano, julguei inutil voltar a bordo do Eurydice, começando a pensar nos meios de me pôr em fuga.
No momento em que fazia estas reflexões, alguma tropa prevenida sem duvida do projecto de nos apoderarmos do quartel, começou a guarnecer a praça.
Vi então que não havia tempo a perder. Refugiei-me em casa de uma vendedeira de fructa e confessei-lhe a situação em que me achava.
A excellente mulher não fez nenhuma reflexão e escondeu-me nos quartos interiores do seu estabelecimento. No dia seguinte procurou-me um fato completo de camponez, e pelas oito horas da noite sahi, como se andasse passeando, de Genova pela porta da Lanterne, começando então essa vida de exilio, luto e perseguição, que, segundo todas as probabilidades, ainda não finalisou.
Estavamos a 5 de fevereiro de 1834.
Abandonando os caminhos batidos e trilhados dirigi-me por atalhos para as montanhas. Tinha bastantes jardins que atravessar, e muitos muros que saltar. Felizmente estava familiarisado com estes exercicios, e depois de uma hora de gymnastica achava-me fóra do ultimo jardim.
Encaminhado-me para Cassiopea, ganhei as montanhas de Sestri, e no fim de dez dias, ou antes de dez noites; cheguei a Niza, dirigindo-me logo a casa de minha tia, na praça da Victoria, a fim de que ella prevenindo minha mãe lhe tirasse todos os cuidados.
Descancei um dia, e na noite seguinte parti acompanhado por dois amigos, José Jaun, e Engelo Gostavini.
Chegados ao Var, achamol-o innundado pelas chuvas, mas para um nadador como eu, não era isto um obstaculo. Atravessei-o metade a nado, metade a vau.
Os meus dois amigos haviam ficado na outra margem. Disse-lhe adeus.
Estava salvo, ou quasi, como se vae vêr.
N'esta esperança dirigi-me a um corpo de guardas da alfandega; disse-lhe quem era, e qual o motivo porque havia deixado Genova.
Os guardas disseram-me que era seu prisioneiro, até nova ordem, e que a iam mandar pedir a Paris.
Julgando que acharia facilmente occasião de fugir, não fiz nenhuma resistencia, e deixei-me conduzir a Grasse, e de Grasse a Draguignan.
Em Draguignan metteram-me em um quarto do primeiro andar, cuja janella sem grades, dava para um jardim.
Aproximei-me d'ella como se quizesse vêr o jardim: da janella ao chão havia a altura de quinze pés. Dei um salto, e em quanto os guardas, menos ligeiros e estimando mais as pernas do que eu estimava as minhas, saíam pela escada; ganhei-lhe muita dianteira embrenhando-me nas montanhas.
Não conhecia o caminho, mas era marinheiro, e lendo no ceo, n'esse grande livro, aonde estava habituado a lêr, orientei-me e dirigi-me a Marselha. No dia seguinte de tarde cheguei a uma villa de que nunca soube o nome, porque nem tive tempo para o perguntar.
Entrei n'uma estalagem. Um mancebo e uma mulher ainda joven estavam á mesa esperando pela ceia.
Pedi alguma cousa de comer: desde a vespera que não havia tomado nenhum alimento.
O dono da hospedaria convidou-me para ceiar na sua companhia e de sua mulher. Acceitei.
A comida era boa, o vinho do paiz agradavel, e o fogo excellente. Senti então um d'esses momentos de bem estar e felicidade, como só se experimentam depois de se haver passado um perigo, e quando se julga não haver mais nada a receiar.
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