As noites de Hong Kong são feitas de neon. Caio Yurgel

As noites de Hong Kong são feitas de neon - Caio Yurgel


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      © Editora Gato-Bravo 2019

      © ilustrações, Frank Tang Kai Yiu

      Não é permitida a reprodução total ou parcial deste livro nem o seu registo em sistema informático, transmissão mediante qualquer forma, meio ou suporte, sem autorização prévia e por escrito dos proprietários do registo do copyright.

      editor Julio Silveira

      coordenação editorial Paula Cajaty

      capa Sobre ilustrações de Frank Tang

      isbn 978-989-8938-52-7

      e-isbn 978-989-8938-54-4

      1a edição: setembro, 2019

      gato·bravo

      rua de Xabregas 12, lote A, 276-289

      1900-440 Lisboa, Portugal

      tel. [+351] 308 803 682

      [email protected]

      editoragatobravo.pt

      Índice

       como fazer amigos

      veni, vidi, amavi

       o vendedor de água

      as manhãs de kowloon

      o fantasma de wan chai

      a rebelião dos boxers

       O OVO E A PEDRA

      o grande confinamento

      Epílogo - memórias de um Sobrado português

      agradecimentos

      como fazer amigos

      Vim para Hong Kong como quem vai à procura de algo que nunca perdeu, como quem revive uma memória de infância roubada de um filme de artes marciais que nunca assistiu. Olho bem para os dois lados antes de atravessar a rua. Não sou eu que estou aqui. Sempre que escrevo tenho a sensação de ser um bicho que está sendo caçado. Os carros vêm no sentido contrário, eu olho bem para os dois lados. Não sou eu que estou aqui, são os meus olhos.

      Em 1987 minha família cruzou a fronteira a bordo de um caminhão. O caminhão era tudo o que tinham, o caminhão e um relógio de parede que minha avó carregou no colo a viagem inteira. Alugamos um velho sobrado português que dividia um pátio com outro velho sobrado português. No velho sobrado português do outro lado do pátio vivia uma família de poloneses que minha avó desprezava unanimemente. “Que no juegues con esos polacos”, me advertia, minha mãe havia morrido no parto. Meu pai e meu avô eram caminhoneiros, passavam semanas e por vezes meses na estrada. Minha avó se ocupava da casa, havia pendurado pesadas cortinas de veludo nas janelas que davam para o pátio, as mesmas cortinas vermelhas de nossa antiga casa em Rosário. Ao lado da lareira posicionou uma mesa e uma cadeira e era dali, as cortinas arredadas um dedo para que uma fresta de sol iluminasse seu rosto, que ela escrevia a meu avô longas cartas em cirílico.

      “A casa está caindo aos pedaços”, minha avó escrevia em cirílico, e para mim dizia, para mim ou para a casa ou para si mesma: “Llegamos a este país como hace trece años llegamos a Argentina: con una mano atrás y otra adelante”. Salvo o eventual e monossilábico cartão-postal, meu avô nunca respondia às cartas em cirílico, minha avó nunca abria as cortinas mais que um dedo. Meu pai sabia se virar em russo por força da necessidade, mas meus avós não lhe tinham ensinado a ler nem a escrever. A mim sequer me ensinaram a falar, e me deram um nome indígena para evitar que um dia eu voltasse aonde nunca havia estado. O cirílico era sua língua secreta, o disfarce que haviam encontrado para rememorar sua Petersburgo natal sem nunca dizer a palavra. Eu, índio de olhos claros, espiava o mundo pelas frestas que eles deixavam abertas, assombrado.

      Meus avós nunca retornaram à sua Petersburgo natal.

      Minha avó se recusava a comer feijão porque deixava um rastro de sujeira no prato. “Somos pobres, pero honrados”, repetia, seu rosto duplamente triste quando me pegava jogando futebol com os poloneses no pátio. “Pobres, pero honrados”. Li meu primeiro Dostoiévski aos doze anos de idade. Estou convencido de que tudo o que aconteceu na minha vida desde então tem a ver com isso.

      Meu melhor amigo foi também meu primeiro e ele morreu de câncer aos trinta anos. Câncer de fígado. Meu primeiro e melhor amigo era negro. Quando minha avó se inteirou desse fato, ela não apenas parou de reclamar dos poloneses, como também passou a chamá-los pelo nome. “¿Por qué no te vas con los Kaczyński al cine?” Minha avó talvez das únicas pessoas naquela cidade inteira que soubesse pronunciar o nome dos poloneses corretamente. “Não sei por que nosso neto não se dá bem com os Kaczyński”, escreveu ela em cirílico com uma fresta de sol no rosto. A carta, como todas as outras, ficou sem resposta.

      É por isso que estou em Hong Kong? Eu não sei, eu não sei porque estou em Hong Kong.

      O piso do velho sobrado português era todo de azulejos, azulejos desgastados, trincados, azulejos como um jornal que havia sido esquecido no sol por cem anos. Nossa brincadeira favorita, minha e do Fernando, era deslizar de meia pelo chão, para o horror de minha avó. “¡Ay que me van a romper el reloj!” ela gritava e nos expulsava de casa. Eu não me lembro direito de cruzar a fronteira, dos quase mil quilômetros de estrada a bordo do caminhão, mas acho que teria gostado de passar a viagem inteira no colo da minha avó.

      Minha avó por vezes flertava com converter-se ao catolicismo só para poder ir à missa. Entre a escola, a adolescência e a casa do Fernando eu quase nunca estava em casa. Minha avó estava entediada, e na casa do Fernando se podia deslizar a tarde inteira. “Tenho pensado muito sobre fé e religião”, ela escrevia em cirílico com a cortina meio aberta, orgulhosa demais, no entanto, para pedir a receita dos pierogies da senhora Kaczyńska e usar isso como desculpa para puxar conversa. “Acho que vou encomendar cortinas novas”.

      Minha avó nunca se converteu ao catolicismo.

      Aos quinze anos recém-cumpridos anunciei a uma casa vazia que era gay e que nunca me casaria e uma semana depois seis colegas de colégio me encurralaram a mim e ao Fernando numa esquina. Nos bateram tanto, por diferentes motivos, que só fui acordar quarenta e oito horas depois no corredor de um hospital. “Tu luta feito uma guria”, foi a primeira coisa que ele disse, ele que era a única pessoa sentada ao meu lado quando me acordei, a cabeça e o punho enfaixados. Eu havia desmaiado com o primeiro soco no rosto, um soco desferido com uma soqueira de metal que me deixou uma cicatriz tão singelamente simétrica, quatro traços equidistantes na bochecha direita, que minha barba nunca conseguiu ou quis ocultá-la. Em nenhuma carta minha avó mencionou o incidente. Talvez ela não soubesse como escrever gay em cirílico.

      Meu pai e meu avô morreram voltando de São Paulo. “Voltem o mais rápido possível”, tinha escrito minha avó uma semana antes em cirílico, “a casa está vazia e eu tenho medo dos meus sonhos”. O caminhão despencou desfiladeiro abaixo porque, suspeita-se, meu avô pegou no sono. Ou meu pai. A perícia não soube precisar quem de fato estava detrás do volante, tão violenta foi a queda. Eles não deveriam estar dirigindo em plena madrugada, foi o único que puderam afirmar com certeza. A senhora Kaczyńska trouxe pierogies para o velório. Eu nunca perdoei minha avó por tê-los feito acelerar cegamente noite adentro.

      Minha avó ainda sobreviveu quinze anos depois disso, sublocando quartos do sobrado e costurando vestidos para gente rica que queria seus vestidos costurados por mãos mais brancas que as suas próprias. Eu já pouco a via, numa das últimas vezes que voltei ao sobrado reparei que ela tinha comprado um dos meus livros. Nenhum de nós mencionou o fato. Quando ela enfim faleceu, dormindo, me deixou as duas únicas coisas que ainda possuía, o relógio de parede e a sua caligrafia. “Dejo este mundo como he dejado todos los países en que he estado”, dizia o bilhete, e a única coisa que pude


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