As noites de Hong Kong são feitas de neon. Caio Yurgel
sobrado aos novos locatários, que me pagaram uma mixaria por tudo mas não quiseram de jeito nenhum ficar com as pesadas cortinas de veludo. Levei-as comigo, pesadas, puídas, maciças, e as guardei debaixo da cama até o dia que enfim decidi me desfazer delas, o dia que comecei a fazer as malas. Resgatei-as das sombras, pensando em talvez vendê-las, e, ao estendê-las na sala, ainda pesadas, ainda maciças, recebi enfim a mensagem que me enviavam do outro lado do mundo: as cortinas estavam todas chamuscadas por dentro, queimadas de preto, inexplicavelmente, como uma caligrafia escrita a brasa e fogo. Mas a essa altura também a Hilda já tinha falecido.
Eu passava minhas tardes de março escrevendo em folhas avulsas que à noite despareciam. Também meus lápis sumiam, eu passava as noites atrás de papel e caneta, passava as noites procurando o que tinha escrito. Pela casa havia dezenas de fotos do Wittgenstein, todas elas emolduradas. Às vezes eu me pegava por horas a fio parado diante de uma delas, às vezes eu ouvia sua voz e às vezes era a minha própria.
— A vida dele foi maravilhosa, ele era um louco deslumbrante.
Às vezes eu acho que sonhei com tudo isso, que a meu lado, em plena madrugada, vestindo um pijama rosa, estava Hilda Hilst.
— Eu sempre tive muito medo de ficar louca. Na minha vida inteira o meu grande temor sempre foi esse.
Não sei por quanto tempo ela esteve ali, olhando-me olhar uma foto emoldurada do Wittgenstein, não sei por quanto tempo eu estive olhando a foto emoldurada do Wittgenstein e não sei por quanto tempo a maior poeta brasileira viva esteve a meu lado, vestindo um pijama rosa, na sala de estar de sua casa, entre a luz e a sombra de uma noite de lua cheia.
— Eu sei por que você está aqui — ela me disse, e quando abri os olhos já estávamos debaixo da figueira.
— Eu conheci o Caio numa vida passada. Vocês dois têm a mesma voz, as mesmas maneiras. Quando vi você na minha porta, fiquei olhando pra você, o coração disparado, achando que o Caio tinha voltado. É cada coisa que acontece aqui nessa casa...
Hilda Hilst riu, a lua cheia desenhava sombras prateadas ao redor de nós três, as sombras se moviam em círculos e nós em pêndulos, eu quase não conseguia ficar de pé. Os cachorros uivavam, os grilos e os empregados também. Ela disse que eu me apoiasse na figueira, ela disse que a figueira era ela.
— Essa figueira sou eu mesma. Nós duas temos uns trezentos anos. Atendemos pedidos. Hoje, aliás, é um bom dia, por causa da lua cheia. Tudo o que eu pedi pra essa figueira deu certo. O que os meus amigos pediram também aconteceu. A figueira deu pro Caio tudo o que ele quis.
O tronco da figueira pesado, puído, maciço debaixo de meus dedos frios, alguém um dia me havia prevenido que a Hilda andava com uns problemas de coração, sessenta anos de cigarros e desregramentos, porém doida, linda, lúcida e insuportável como sempre. Minha cabeça me doía, eu não conseguia mais sentir meus dedos, sentia outra vez como se a caneta se escapasse da minha mão.
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