Mestres da Poesia - Fernando Pessoa. Fernando Pessoa

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chocolates!

      Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

      Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

      Come, pequena suja, come!

      Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

      Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,

      Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

      Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei

      A caligrafia rápida destes versos,

      Pórtico partido para o Impossível.

      Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,

      Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

      A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,

      E fico em casa sem camisa.

      (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,

      Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,

      Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,

      Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,

      Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,

      Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,

      Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,

      Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!

      Meu coração é um balde despejado.

      Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco

      A mim mesmo e não encontro nada.

      Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.

      Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,

      Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,

      Vejo os cães que também existem,

      E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

      E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

      Vivi, estudei, amei, e até cri,

      E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

      Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

      E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses

      (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);

      Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo

      E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

      Fiz de mim o que não soube,

      E o que podia fazer de mim não o fiz.

      O dominó que vesti era errado.

      Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

      Quando quis tirar a máscara,

      Estava pegada à cara.

      Quando a tirei e me vi ao espelho,

      Já tinha envelhecido.

      Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.

      Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

      Como um cão tolerado pela gerência

      Por ser inofensivo

      E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

      Essência musical dos meus versos inúteis,

      Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,

      E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

      Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

      Como um tapete em que um bêbado tropeça

      Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

      Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

      Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada

      E com o desconforto da alma mal-entendendo.

      Ele morrerá e eu morrerei.

      Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.

      A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.

      Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

      E a língua em que foram escritos os versos.

      Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

      Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente

      Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

      Sempre uma coisa defronte da outra,

      Sempre uma coisa tão inútil como a outra,

      Sempre o impossível tão estúpido como o real,

      Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,

      Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

      Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),

      E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.

      Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

      E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

      Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

      E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

      Sigo o fumo como uma rota própria,

      E gozo, num momento sensitivo e competente,

      A libertação de todas as especulações

      E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

      Depois deito-me para trás na cadeira

      E continuo fumando.

      Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

      (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira

      Talvez fosse feliz.)

      Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

      O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

      Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.

      (O dono da Tabacaria chegou à porta.)

      Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

      Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo

      Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

      Cruz na Porta

      Cruz na porta da tabacaria!

      Quem morreu? O próprio Alves? Dou

      Ao diabo o bem-estar que trazia.

      Desde ontem a cidade mudou.

      Quem era? Ora, era quem eu via.

      Todos os dias o via. Estou

      Agora sem essa monotonia.

      Desde ontem a cidade mudou.

      Ele era o dono da tabacaria.

      Um ponto de referência de quem sou

      Eu passava ali de noite e de dia.

      Desde ontem a cidade mudou.

      Meu coração tem pouca alegria,

      E isto diz que é morte aquilo


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