Mestres da Poesia - Fernando Pessoa. Fernando Pessoa

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nada, mais nada, absolutamente mais nada.

      Duas vezes no ano pensam em ti.

      Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,

      E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

      Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...

      Se queres matar-te, mata-te...

      Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...

      Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

      Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera

      As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

      Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

      Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.

      Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

      És importante para ti, porque é a ti que te sentes.

      És tudo para ti, porque para ti és o universo,

      E o próprio universo e os outros

      Satélites da tua subjetividade objetiva.

      És importante para ti porque só tu és importante para ti.

      E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

      Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?

      Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,

      Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

      Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?

      Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,

      Torna-te parte carnal da terra e das coisas!

      Dispersa-te, sistema físico-químico

      De células noturnamente conscientes

      Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,

      Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,

      Pela relva e a erva da proliferação dos seres,

      Pela névoa atômica das coisas,

      Pelas paredes turbilhonantes

      Do vácuo dinâmico do mundo...

      Grandes são os desertos, e tudo é deserto

      Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

      Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto

      Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.

      Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes

      Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,

      Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

      Grandes são os desertos, minha alma!

      Grandes são os desertos.

      Não tirei bilhete para a vida,

      Errei a porta do sentimento,

      Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.

      Hoje não me resta, em vésperas de viagem,

      Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,

      Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,

      Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)

      Senão saber isto:

      Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

      Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,

      Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar

      Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)

      Acendo o cigarro para adiar a viagem,

      Para adiar todas as viagens.

      Para adiar o universo inteiro.

      Volta amanhã, realidade!

      Basta por hoje, gentes!

      Adia-te, presente absoluto!

      Mais vale não ser que ser assim.

      Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,

      E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

      Mas tenho que arrumar mala,

      Tenho por força que arrumar a mala,

      A mala.

      Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.

      Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.

      Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,

      A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

      Tenho que arrumar a mala de ser.

      Tenho que existir a arrumar malas.

      A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.

      Olho para o lado, verifico que estou a dormir.

      Sei só que tenho que arrumar a mala,

      E que os desertos são grandes e tudo é deserto,

      E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

      Ergo-me de repente todos os Césares.

      Vou definitivamente arrumar a mala.

      Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;

      Hei de vê-la levar de aqui,

      Hei de existir independentemente dela.

      Grandes são os desertos e tudo é deserto,

      Salvo erro, naturalmente.

      Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

      Mais vale arrumar a mala.

      Fim.

      Aniversário

      No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

      Eu era feliz e ninguém estava morto.

      Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

      E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

      No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

      Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

      De ser inteligente para entre a família,

      E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

      Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

      Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

      Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

      O que fui de coração e parentesco.

      O que fui de serões de meia-província,

      O que fui de amarem-me e eu ser menino,

      O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

      A que distância!...

      (Nem o acho... )

      O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

      O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,

      Pondo grelado nas paredes...

      O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

      O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

      É terem morrido todos,

      É estar


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