Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Zola, La Faute de L'Abbé Mouret (que é o quinto volume da série Rougon Macquart), foi escrito e publicado em 1875.

      Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) eu considero esta razão apenas como subalterna e insuficiente. Eu podia, enfim, ter penetrado no cérebro, no pensamento do Sr. Zola, e ter avistado, entre as formas ainda indecisas das suas criações futuras, a figura do abade Mouret, — exatamente como o venerável Anquises no vale dos Elísios podia ver, entre as sombras das raças vindouras flutuando na névoa luminosa do Lete, aquele que um dia devia ser Marcelo. Tais coisas são possíveis. Nem o homem prudente as deve considerar mais extraordinárias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos Céus — e outros prodígios provados.

      O que, segundo penso, mostra melhor que a acusação carece de exatidão, é a simples comparação dos dois romances. La Faute de L'Abbé Mouret é, no seu episódio central, o quadro alegórico da iniciação do primeiro homem e da primeira mulher no amor. O abade Mouret (Sérgio), tendo sido atacado duma febre cerebral, trazida principalmente pela sua exaltação mística no culto da Virgem, na solidão de um vale abrasado da Provença (primeira parte do livro), é levado para convalescer ao Paradou, antigo parque do século XVII a que o abandono refez uma virgindade selvagem, e que é a representação alegórica do Paraíso. Ai, tendo perdido na lebre a consciência de si mesmo a ponto de se esquecer do seu sacerdócio e da existência da aldeia, e a consciência do universo a ponto de ter medo do Sol e das árvores do Paradou como de monstros estranhos — erra, durante meses, pelas profundidades do bosque inculto, com Albina que é o gênio, a Eva desse lugar de legenda; Albina e Sérgio, seminus como no Paraíso, procuram sem cessar, por um instinto que os impele, urna árvore misteriosa, da rama da qual cai a influência afrodisíaca da matéria procriadora; sob este símbolo da Árvore da Ciência se possuem, depois de dias angustiosos em que tentam descobrir, na sua inocência paradisíaca, o meio físico de realizar o amor; depois, numa mútua vergonha súbita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens; e dai os expulsa, os arranca o padre Arcangias, que é a personificação teocrática do antigo Arcanjo. Na última parte do livro o abade Mouret recupera a consciência de si mesmo, subtrai-se á influência dissolvente da adoração da Virgem, obtém por um esforço da oração e um privilégio da graça a extinção da sua virilidade, e torna-se um asceta sem nada de humano, uma sombra caída aos pés da cruz; e, é sem que lhe mude a cor do rosto que asperge e responsa o esquife de Albina, que se asfixiou no Paradou sob um montão de flores de perfumes fortes.

      Os críticos inteligentes que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de L'Abbé Mouret não tinham infelizmente lido o romance maravilhoso do Sr. Zola, foi talvez a origem de toda a sua g1ória. A semelhança casual dos dois títulos induziu-os em erro.

      Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade córnea ou má-fé cínica poderia assemelhar esta bela alegoria idílica, a que está misturado o patético drama duma alma mística, a'O Crime do Padre Amaro que, como podem ver neste novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clérigos e de beatas tramada e murmurada à sombra duma velha Sé de província portuguesa.

      Aproveito este momento para agradecer à Crítica do Brasil e de Portugal a atenção que ela tem dado aos meus trabalhos.

      Bristol, 1 de Janeiro de 1880.

      EÇA DE QUEIRÓS

      I

      Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica — que o detestava — costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:

      — Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura!

      Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe — à hora em que defronte, na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes.

      Nunca fora querido das devotas; arrotava no confessionário, e, tendo vivido sempre em freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao princípio, quase todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia !

      E quando as beatas, que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos de visões, José Miguéis escandalizava-as, rosnando:

      — Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus! Mais miolo na bola!

      As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:

      — Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura!

      Era miguelista — e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no duma cólera irracionável:

      — Cacete ! cacete ! exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho.

      Nos últimos anos tomara hábitos sedentários, e vivia isolado — com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho. O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio — que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.

      O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hércules.

      — Hércules pela força — explicava sorrindo, Frei pela gula.

      No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cônegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra:

      — É a última pitada que lhe dou!

      Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o cônego Campos contou-o à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e afirmou-se com respeito — que sua excelência tinha muita pilhéria !

      Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o Joli. A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, — que tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido dum dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz Joli ; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão, repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã apareceu morto ao pé da Misericórdia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguém tomou a ver o cão, na Praça, o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.

      Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco. Dizia-se que era um homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposição, falou com amargura, citando o Gólgota, no favoritismo da corte e na reação clerical. Alguns padres tinham-se escandalizado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre.

      — Não, não, lá que há favor, há; e que o homem tem padrinhos, tem — disse o chantre. — A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da Justiça).

      Até me diz na carta que o pároco é um belo rapagão. De sorte que — acrescentou sorrindo com satisfação — depois de Frei Hércules vamos talvez ter Frei Apolo.

      Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o pároco novo: era o cônego Dias, que fora nos primeiros anos


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