Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros


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Não, minha senhora. Não uso. Boas noites!

      E desceu devagar, palitando os dentes.

      A S. Joaneira alumiava no patamar, com o candeeiro. Mas nos primeiros degraus o pároco parou, e voltando-se, afetuosamente:

      — É verdade, minha senhora, amanhã é sexta-feira, é jejum...

      — Não, não, acudiu o cônego que se embrulhava na capa de lustrina, bocejando, você amanhã janta comigo. Eu venho por cá, vamos ao chantre, á Sé, e por aí... E olhe que tenho lulas. É um milagre, que isto aqui nunca há peixe.

      A S. Joaneira tranqüilizou logo o pároco.

      — Ai, é escusado lembrar os jejuns, senhor pároco. Tenho o maior escrúpulo!

      — Eu dizia, explicou o pároco, porque infelizmente hoje em dia ninguém cumpre.

      — Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ela. — Mas eu! credo !... A salvação da minha alma antes de tudo!

      A campainha embaixo, então, retiniu fortemente.

      — Há-de ser a pequena, disse a S. Joaneira. Abre, Ruça !

      A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.

      — És tu, Amélia?

      Uma voz disse adeusinho ! adeusinho ! E apareceu, subindo quase a correr, com os vestidos um pouco apanhados adiante, uma bela rapariga, forte, alta, bem-feita, com uma manta branca pela cabeça e na mão um ramo de alecrim.

      — Sobe, filha. Aqui está o senhor pároco. Chegou agora à noitinha, sobe!

      Amélia tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus de cima, onde o pároco ficara, encostado ao corrimão. Respirava fortemente de ter corrido; vinha corada; os seus olhos vivos e negros luziam; e saía dela uma sensação de frescura e de prados atravessados.

      O pároco desceu, cingido ao corrimão, para a deixar passar, murmurando boas-noites ! com a cabeça baixa. O cônego, que descia atrás, pesadamente, tomou o meio da escada, diante de Amélia:

      — Então isto são horas, sua brejeira?

      Ela teve um risinho, encolheu-se.

      — Ora vá-se encomendar a Deus, vá! disse batendo-lhe no rosto devagarinho com a sua mão grossa e cabeluda.

      Ela subiu a correr, enquanto o cônego, depois de ir buscar o guarda— sol à saleta, saía, dizendo à criada, que erguia o candeeiro sobre a escada:

      — Está bem, eu vejo, não apanhes frio, rapariga. Então às oito, Amaro! Esteja a pé! Vai-te, rapariga, adeus! Reza à Senhora da Piedade que te seque essa catarreira.

      O pároco fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga dum Cristo crucificado. Amaro abriu o seu Breviário, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e então por cima, sobre o teto, através das orações rituais que maquinalmente ia lendo, começou a sentir o tique-tique das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se.

      III

      Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marquesa de Alegros. Seu pai era criado do marquês; a mãe era criada de quarto; quase uma amiga da senhora marquesa. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das Selvas, com bárbaras imagens coloridas que tinha escrito na primeira página branca: À minha muito estimada criada Joana Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido, — Marquesa de Alegros. Possuía também um dagtterreótipo de sua mãe: era uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma cor ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãe, que fora sempre tão sã, sucumbiu, daí a um ano, a uma tísica de laringe. Amaro completara então seis anos. Tinha uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio, merceeiro abastado do bairro da Estrela. Mas a senhora marquesa ganhara amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adoção tácita: e começou, com grandes escrúpulos, a vigiar a sua educação.

      A marquesa de Alegros ficara viúva aos quarenta e três anos, e passava a maior parte do ano retirada na sua quinta de Carcavelos. Era uma pessoa passiva, de bondade indolente, com capela em casa, um respeito devoto pelos padres de S. Luís, sempre preocupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas no receio do céu e nas preocupações da Moda, eram beatas e faziam o chique falando com igual fervor da humildade cristã e do último figurino de Bruxelas. Um jornalista de então dissera delas: — Pensam todos os dias na toalete com que hão-de entrar no Paraíso.

      No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alamedas aristocráticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então ocupações avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da freguesia, bordavam frontais para os altares da igreja. De Maio a Outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e doces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de Verão.

      A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida eclesiástica. A sua figura amarelada e magrita pedia aquele destino recolhido: era já afeiçoado às coisas de capela, e o seu encanto era estar aninhado ao pé das mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de santas. A senhora marquesa não o quis mandar ao colégio porque receava a impiedade dos tempos, e as camaradagens imorais. O capelão da casa ensinava— lhe o latim, e a filha mais velha, a Sra. D. Luísa, que tinha um nariz de cavalete e lia Chateaubriand, dava-lhe lições de francês e de geografia.

      Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha-morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se à tarde acompanhava a senhora marquesa às alamedas da quinta, quando ela descia pelo braço do padre Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, mono, muito encolhido, torcendo com as mãos úmidas o forro das algibeiras, — vagamente assustado das espessuras de arvoredos e do vigor das relvas altas.

      Tomou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé de uma ama velha. As criadas de resto feminizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio delas, beijocavam-no, faziam-lhe cócegas, e ele rolava por entre as saias, em contato com os corpos, com gritinhos de contentamento. Às vezes, quando a senhora marquesa saía, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas; ele abandonava-se, meio nu, com os seus modos lânguidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas, além disso, utilizavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tomou-se enredador, muito mentiroso.

      Aos onze anos ajudava à missa, e aos sábados limpava a capela. Era o seu melhor dia; fechava-se por dentro, colocava os santos em plena luz em cima duma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santíssimo, ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Mártires.

      No entanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miúdo e amarelado; nunca dava uma boa risada; trazia sempre as mãos nos bolsos. Estava constantemente metido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas; bulia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente preguiçoso, e custava de manhã arrancá-lo a uma sonolência doentia em que ficava amolecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado ao travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca.

      Num domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marquesa de repente caiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joana, entrasse aos quinze anos no seminário e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado de realizar esta disposição piedosa. Amaro tinha então treze anos.

      As filhas da senhora marquesa deixaram logo Carcavelos e foram para Lisboa, para a casa da Sra. D. Bárbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrela. O merceeiro era um homem obeso, casado com a filha dum pobre empregado


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