Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
eiras cheias de medas, apear à porta das adegas! E, a não ser alguns devotos, todos, ou aspirando ao sacerdócio ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza do seminário para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.
Amaro não desejava nada:
— Eu nem sei, dizia ele melancolicamente.
No entretanto, escutando por simpatia aqueles para quem o seminário era o "tempo das galés", saia muito perturbado daquelas conversas cheias de impaciente ambição da vida livre. Às vezes falavam de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janelas, as peripécias da noite negra pelos negros caminhos: anteviam balcões de tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir, e, no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos, ardia como uma brasa silenciosa o desejo da Mulher.
Na sua cela havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas, pousada sobre a esfera, com o olhar errante pela luz imortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ela como para um refúgio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava, despindo-se olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca... Julgava então ver os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama de água benta; mas não se atrevia a revelar estes delírios, no confessionário, ao domingo.
Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral falar, com a sua voz roufenha, do Pecado, compará-lo à serpente e com palavras untuosas e gestos arqueados, deixando cair vagarosamente a pompa melíflua dos seus períodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos pés a serpente ominosa! E depois era o mestre de Teologia mística que falava, sorvendo o seu rapé, no dever de vencer a Natureza! E citando S. João de Damasco e S. Crisólogo, S. Cipriano e S. Jerônimo, explicava os anátemas dos santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente, Dardo, Filha da Mentira, Porta do Inferno, Cabeça do Crime, Escorpião...
— E como disse o nosso padre S. Jerônimo — e assoava-se estrondosamente — Caminho de iniqüidade, iniquita via!
Até nos compêndios encontrava a preocupação da Mulher! Que ser era esse, pois, que através de toda a teologia ora era colocada sobre o altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apóstrofes bárbaras? Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu encontro, numa paixão extática, dando-lhe por aclamação o profundo reino dos Céus, — ora vai fugindo diante dela como do Universal Inimigo, com soluços de terror e gritos de ódio, e escondendo-se, para a não ver, nas tebaidas e nos claustros, vai ali morrendo do mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações: elas renasciam, desmoralizavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos desfalecia no desejo de os quebrar.
E em redor dele, sentia iguais rebeliões da natureza: os estudos, os jejuns, as penitências podiam domar o corpo, dar-lhe hábitos maquinais, mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como num ninho serpentes imperturbadas. Os que mais sofriam eram os sangüíneos, tão doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento irrompia: lutavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos linfáticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os silêncios moles: desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com um velho baralho, ler um romance, obter de intrigas demoradas um maço de cigarros — quantos encantos do pecado!
Amaro por fim quase invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silêncio da alta livraria, eram respeitados, usavam óculos, tomavam rapé. Ele mesmo tinha às vezes ambições repentinas de ciência; mas diante dos vastos infolios vinha-lhe um tédio insuperável. Era no entanto devoto: rezava, tinha fé ilimitada em certos santos, um terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminário! A capela, os chorões do pátio, as comidas monótonas do longo refeitório lajeado, os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse na liberdade duma rua ou na paz dum quintal, fora daquelas negras paredes. Emagrecia, tinha suores éticos: e mesmo no último ano, depois do serviço pesado da Semana Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa.
Ordenou-se enfim pelas têmporas de S. Mateus; e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminário, esta carta do Sr. padre Liset:
{{d|"Meu querido filho e novo colega.— Agora que está ordenado, entendo em minha consciência que devo dar-lhe conta do estado dos seus negócios, pois quero cumprir até o fim o encargo com que carregou os meus ombros débeis a nossa chorada marquesa, atribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco devam importar a uma alma votada ao sacerdócio, são sempre as boas contas que fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da querida marquesa — para quem deve erguer em sua alma uma gratidão eterna — está inteiramente exausto. Aproveito esta ocasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o estabeleci mento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: caiu sob o império das paixões, e tendo-se ligado ilegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de hóspedes na Rua dos Calafates n? 53. Se toco nestas impurezas, tão impróprias de que um tenro levita, como o meu querido filho, tenha delas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitável família. Sua irmã, como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circunstâncias, que o meu querido filho esteja de posse deste fato. Do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguesia de Feirão, na Gralheira, vou falar com algumas pessoas importantes que têm a extrema bondade de atender um pobre padre que só pede a Deus misericórdia. Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se encontra a felicidade neste nosso santo ministério quando sabemos compreender quantos são os bálsamos que derrama no peito e quantos os refrigérios que dá — o serviço de Deus.' Adeus, meu querido filho e novo colega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupilo da nossa chorada marquesa, que decerto do Céu, onde a elevaram as suas virtudes, suplica à Virgem, que ela tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupilo ". Liset.
"P.S. — O apelido do marido de sua irmã é Trigoso. " Liset.}}
Dois meses depois Amaro foi nomeado pároco de Feirão, na Gralheira, serra da Beira Alta. Esteve ali desde Outubro até o fim das neves.
Feirão é uma paróquia pobre de pastores e naquela época quase desabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tédio à lareira, ouvindo fora o Inverno bramir na serra. Pela Primavera vagaram nos distritos de Santarém e de Leiria paróquias populosas, com boas côngruas. Amaro escreveu logo à irmã contando a sua pobreza em Feirão; ela mandou— lhe, com recomendações de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro partiu imediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham— lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito, simpático, com uma boa cor na pele trigueira.
Logo que chegou a Lisboa foi à Rua dos Calafates no 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços vermelhos numa cuia enorme, toda coberta de pó-de-arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro.
— Como estás bonito! Ora não há! Quem te viu? Ih, Jesus! Que mudança!
Admirava-lhe a batina, a coroa: e contando-lhe as suas desgraças, com exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos gêneros, foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão.
— Ficas aqui como um abade, disse-lhe ela. E baratinho!... Ai! ter— te de graça queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joãozinho!... Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com Joãozinho na cabeça...
Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luís. Tinha ido