Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
Quando vira no quarto dele os cabides sem a sua roupa, a cômoda sem os seus livros, rompeu a chorar. Foi beijar a travesseirinha onde ele dormia, apertou ao peito com delírio a última toalha a que ele limpara as mãos! Tinha constantemente o seu rosto presente, ele entrara sempre nos seus sonhos. E com a separação o seu amor ardia mais forte e mais alto, como uma fogueira que se isola.
Uma tarde, que fora visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao chegar à Ponte gente parada, embasbacada com gozo para uma rapariga de cuia à banda e garibaldi escarlate, que, de punho no ar, já rouca, praguejava contra um soldado: o rapazola, um beirão de cara redonda e lorpa coberta de penugem loura, virava-lhe as costas, encolhendo os ombros, as mãos muito enterradas nos bolsos, rosnando:
— Não lhe fez mal, não lhe fez mal...
O Sr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parara a olhar, descontente daquela "falta de ordem pública".
— Algum barulho? perguntou-lhe Amélia.
— O1á, menina Amélia! Não, uma brincadeira do soldado. Atirou- lhe um rato morto à cara, e a mulher está a fazer aquele espalhafato. Bêbedas!
Mas a rapariga de garibaldi vermelho voltara-se - e Amélia aterrada reconheceu a Joaninha Gomes, sua amiga da mestra, que fora amante do padre Abílio! O padre fora suspenso, deixara-a; ela partira para Pombal, depois para o Porto; de miséria em miséria voltara a Leiria, e aí vivia nalguma viela ao pé do quartel, entisicando, gasta por todo um regimento! - Que exemplo, Santo Deus, que exemplo!...
E também ela gostava dum padre! Também ela, como outrora a Joaninha, chorava sobre a sua costura quando o Sr, padre Amaro não vinha! Onde a levava aquela paixão! À sorte da Joaninha! A ser a amiga do pároco! E via-se já apontada a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada por ele, com um filho nas entranhas, sem um pedaço de pão!... E, como uma rajada de vento que limpa num momento um céu enevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de Joaninha varreu-lhe do espírito as névoas amorosas e mórbidas, em que ela se ia perdendo. Decidiu aproveitar a separação, esquecer Amaro; lembrou-se mesmo de apressar o seu casamento com João Eduardo, para se refugiar num dever dominante; durante alguns dias forçou-se a interessar-se por ele; começou mesmo a bordar-lhe umas chinelas...
Mas pouco a pouco a idéia má que, atacada, se encolhera e se fingira morta, - principiou lentamente a desenroscar-se, a subir, a invadi-la! De dia, de noite, costurando e rezando, a idéia do padre Amaro, os seus olhos, a sua voz apareciam-lhe, tentações teimosas! com um encanto crescente. Que faria ele? por que não vinha? gostava de outra? Tinha ciúmes indefinidos, mas mordentes, que a queimavam. E aquela paixão ia-a envolvendo como uma atmosfera de onde não podia sair, que a seguia se ela fugia, e que a fazia viver! As suas resoluções honestas ressequiam-se, morriam como débeis florinhas naquele fogo que a percorria. Se às vezes a lembrança de Joaninha ainda voltava, repelia-a com irritação; e acolhia alvoroçadamente todas as razões insensatas que lhe vinham de amar o padre Amaro! Tinha agora só uma idéia - atirar-lhe os braços ao pescoço e beijá-lo, oh! beijá-lo!... Depois, se fosse necessário, morrer!
Começou então a impacientar-se com o amor de João Eduardo. Achava-o "palerma".
— Que maçada! pensava quando lhe sentia os passos na escada, à noite.
Não o suportava com os seus olhos voltados sempre para ela, a sua quinzena preta, as suas monótonas conversas sobre o governo civil.
E idealizava Amaro! As suas noites eram sacudidas de sonhos lúbricos; de dia vivia numa inquietação de ciúmes, com melancolias lúgubres, que a tornavam, como dizia a mãe, "uma mona, que até enraivece"!
O gênio azedava-se-lhe.
— Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a mãe.
— Não me sinto boa. Estou para ter alguma!
Andava, com efeito, amarela, perdera o apetite. E enfim uma manhã ficou de cama com febre. A mãe, assustada, chamou o doutor Gouveia. O velho prático, depois de ver Amélia, veio à sala de jantar sorvendo com satisfação a sua pitada.
— Então, senhor doutor? disse a S. Joaneira.
— Case-me esta rapariga, S. Joaneira, case-me esta rapariga. Tenho- lho dito tantas vezes, criatura!
— Mas, senhor doutor...
— Mas case-a por uma vez, S. Joaneira, case-a por uma vez! repetia ele pelas escadas, arrastando um pouco a perna direita que um reumatismo teimoso encolhia.
Amélia enfim melhorou - com grande alegria de João Eduardo, que enquanto ela estivera doente vivera numa aflição, lamentando não poder ser seu enfermeiro, e derramando às vezes no cartório uma lágrima triste sobre os papéis selados do severo Nunes Ferral.
No domingo seguinte, à missa das nove horas na Sé, Amaro, ao subir para o altar, entre as devotas que se arredavam, viu de relance Amélia ao pé da mãe, com o seu vestido de seda preta de largos folhos. Cerrou um momento os olhos; e mal podia sustentar o cálix com as mãos trêmulas.
Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o missal, se persignou e se voltou para a igreja dizendo Dominus vobiscum - a mulher do Carlos da botica disse baixo a Amélia "que o senhor pároco estava tão amarelo, que devia ter alguma dor". Amélia não respondeu, curvada sobre o livro com todo o sangue nas faces. E durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a face banhada num êxtase baboso, gozou a sua presença, as suas mãos magras erguendo a hóstia, a sua cabeça bem-feita curvando-se na adoração ritual; uma doçura corria- lhe na pele quando a voz dele, apressada, dizia mais alto algum latim; e quando Amaro, tendo a mão esquerda no peito e a direita estendida, disse para a igreja o Benedicat vos, ela, com os olhos muito abertos, arremessou toda a sua alma para o altar, como se ele fosse o próprio Deus a cuja bênção as cabeças se curvavam ao comprido da Sé, até ao fundo, onde os homens do campo com os seus varapaus pasmavam para os dourados do sacrário.
À saída da missa começara a chover; e Amélia e a mãe, á porta com outras senhoras, esperavam uma "aberta".
— Olá! por aqui? disse de repente Amaro, chegando-se, muito branco.
— Estamos à espera que passe a chuva, senhor pároco, disse a S. Joaneira voltando-se. E imediatamente, muito repreensiva: - E por que não tem aparecido, senhor pároco? Realmente! Que lhe fizemos nós? Credo, até dá que falar...
— Muito ocupado, muito ocupado... balbuciou o pároco.
— Mas um bocadinho à noite. Olhe, pode crer, tem-me causado desgosto... E todos têm reparado. Não, lá isso, senhor pároco, tem sido ingratidão!
Amaro disse, corando:
— Pois acabou-se. Hoje à noite lá apareço, e estão as pazes feitas...
Amélia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbação olhava para todos os pontos o céu carregado, como assustada do temporal.
Amaro então ofereceu-lhe o seu guarda-chuva. E enquanto a S. Joaneira o abria, apanhando com cuidado o vestido de seda, Amélia disse ao pároco:
— Até à noite, sim? - e mais baixo, olhando em redor, com medo: - Oh, vá! Tenho estado tão triste! tenho estado como doida! Vá, peço- lhe eu!
Amaro, voltando para casa, continha-se para não correr pelas ruas de batina. Entrou no quarto, sentou-se aos pés da cama, e ali ficou saturado de felicidade, como um pardal muito farto num raio de sol muito quente: recordava o rosto de Amélia, a redondeza dos seus ombros, a beleza dos encontros, as palavras que lhe dissera: - Tenho estado como doida! A certeza de que "a rapariga gostava dele" entrou-lhe então na alma com a violência de uma rajada, e ficou a sussurrar por todos os recantos do seu ser com um murmúrio melodioso de felicidades agitadas. E passeava pelo quarto com passadas de côvado, estendendo os braços, desejando a posse imediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia defronte ao espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o sustentasse a ele! Mal pôde jantar. Com que impaciência desejava a noite! A tarde clareava; a cada momento tirava o seu cebolão