Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros


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o seu Breviário - porque, em presença daquele amor adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus ou os santos escandalizados o viessem perturbar; e não queria, com desleixos de devoção, dar-lhes razão de queixa.

      Ao entrar na rua de Amélia o coração bateu-lhe tão forte que teve de parar, sufocado; pareceu-lhe melodioso o piar das corujas na velha Misericórdia, que há tantas semanas não ouvia.

      Que admiração quando ela apareceu na sala de jantar!

      — Ditosos olhos que o vêem! Pensávamos que tinha morrido! Grande milagre!

      Estavam a Sra. D. Maria da Assunção, e as Gansosos. Arredaram as cadeiras com entusiasmo para lhe dar lugar, admirá-lo.

      — Então que tem feito, que tem feito? E olhe que está mais magro!

      O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O Sr. Artur Couceiro improvisou-lhe um fadinho à viola:

      Ora já cá temos o senhor pároco

      Nos chás da S. Joaneira.

      Isto já parece outra coisa,

      Volta a bela cavaqueira!

      Houve palmas. E a S. Joaneira, toda banhada de riso.

      — Ai, tem sido uma ingratidão dele!

      — Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o cônego. Uma casmurrice, digo eu!

      Amélia não falava, com as faces abrasadas, os olhos úmidos pasmados para o padre Amaro - a quem tinham dado a poltrona do cônego, e que se repoltreava nela, túmido de gozo, fazendo rir as senhoras pelas pilhérias com que contava os desleixos da Vicência.

      João Eduardo, isolado a um canto, ia folheando o velho álbum.

      IX

      Assim recomeçou a intimidade de Amaro na Rua da Misericórdia. Jantava cedo, depois lia o seu Breviário; e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhava-se no seu capote e dava volta pela Praça passando rente da botica, onde os frequentadores caturravam, com as mãos moles apoiadas ao cabo dos guarda-chuvas. Mal avistava a janela da sala de jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam; mas ao toque agudo da campainha sentia às vezes um susto indefinido de achar a mãe já desconfiada ou Amélia mais fria!... Mesmo por superstição entrava sempre com o pé direito.

      Encontrava já as Gansosos, a D. Josefa Dias; e o cônego, que jantava agora muito com a S. Joaneira e que àquela hora, estirado na poltrona, findava a sua soneca, dizia-lhe bocejando:

      — Ora viva o menino bonito!

      Amaro ia sentar-se ao pé de Amélia, que costurava à mesa; o olhar penetrante que se trocavam era todos os dias como o mútuo juramento mudo que o seu amor crescera desde a véspera; e às vezes mesmo, debaixo da mesa, roçavam os joelhos com furor. Começava então a cavaqueira. Eram sempre os mesmos interessezinhos, as questões que iam na Misericórdia, o que dissera o senhor chantre, o cônego Campos que despedira a criada, o que se rosnava da mulher do Novais...

      — Mais amor do próximo! resmungava o cônego mexendo-se na poltrona. E com um arroto curto tornava a cerrar as pálpebras.

      Então as botas de João Eduardo rangiam na escada, e Amélia imediatamente abria a mesinha para a partida de manilha: os parceiros eram a Gansoso, D. Josefa, o pároco; e como Amaro jogava mal, Amélia, que era mestra, sentava-se por detrás dele para o "guiar". Logo às primeiras vasas havia altercações. Então Amaro voltava o rosto para Amélia, tão perto que confundiam os seus hálitos.

      — Esta? perguntava, indicando a carta com olho lânguido.

      — Não! não! espere, deixe ver, dizia ela, vermelha.

      O seu braço roçava o ombro do pároco: Amaro sentia o cheiro da água-de-colônia que ela usava com exagero.

      Defronte, ao pé de Joaquina Gansoso, João Eduardo, mordicando o bigode, contemplava-a com paixão; Amélia, para se desembaraçar daqueles dois olhos langorosos fitos nela, tinha-lhe dito, por fim "que até era indecente, diante do pároco que era de cerimônia, estar assim a cocá-la toda a noite".

      Às vezes mesmo dizia-lhe, rindo:

      — Ó Sr. João Eduardo, vá conversar com a mamã, se não temo-la aqui temo-la a dormir.

      E João Eduardo ia sentar-se ao pé da S. Joaneira, que, de lunetas na ponta do nariz, fazia sonolentamente a sua meia.

      Depois do chá Amélia sentava-se ao piano. Causava então entusiasmo em Leiria uma velha canção mexicana, a Chiquita. Amaro achava-a de apetite; e sorria de gozo, com os seus dentes muito brancos, apenas Amélia começava com muita languidez tropical:

      Quando sali de la Habana,

      Valga-me Dios ! ...

      Mas Amaro amava sobretudo a outra estrofe, quando Amélia, com os dedos frouxos no teclado, o busto deitado para trás, rolando os olhos ternos, em movimentos doces de cabeça, dizia, toda voluptuosa, silabando o espanhol:

       Si à tua ventana llegaUna paloma,Trata-la com cariñoQue es mi persona. E como a achava graciosa, crioula, quando ela gorjeava:Ay chiquita que si,Ay chiquita que no-o-o-o!

      Mas as velhas reclamavam-no para continuar a manilha, e ele ia sentar-se, cantarolando as últimas notas, com o cigarro ao canto da boca, os olhos úmidos de felicidade.

      Às sextas-feiras era a grande partida. A Sra. D. Maria da Assunção aparecia sempre com o seu belo vestido de seda preta: e como era rica e tinha parentela fidalga, davam-lhe com deferência o melhor lugar ao pé da mesa - que ela ia ocupar, meneando pretensiosamente os quadris, com ruge-ruges de seda. Antes do chá, a S. Joaneira levava-a sempre ao seu quarto, onde guardava para ela uma garrafa de jeropiga velha: e ali as duas amigas tagarelavam muito tempo, sentadas em cadeirinhas baixas. Depois Artur Couceiro, cada dia mais chupado e mais tísico, cantava o fado novo que compusera, chamado o Fado da Confissão; eram quadras feitas para regalar aquela piedosa reunião de saias e de batinas:

      Na capelinha do amor,

      No fundo da sacristia,

      Ao senhor padre Cupido

      Confessei-me noutro dia...

      Vinha depois a confissão de pecadinhos doces, um ato de contrição de amor, uma penitência terna:

      Seis beijinhos de manhã,

      De tarde um abraço só...

      E pra acalmar doces chamas

      Jejuar a pão-de-ló.

      Aquela composição galante e devota fora muito apreciada na sociedade eclesiástica de Leiria. O senhor chantre pedira uma cópia, e perguntara, referindo-se ao poeta:

      — Quem é o hábil Anacreonte?

      E informado que era o escrevente da administração, falou dele com tanto apreço à esposa do senhor governador civil, que Artur obteve a gratificação de oito mil-réis, que havia anos implorava.

      Àquelas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua última pilhéria era furtar beijos à Sra. D. Maria da Assunção; a velha escandalizava-se muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revés um olhar guloso. Depois o Libaninho desaparecia um momento, e entrava com uma saia de Amélia vestida, uma touca da S. Joaneira, fingindo uma chama lúbrica por João Eduardo - que, entre as risadas agudas das velhas, recuava, muito escarlate. Brito e Natário vinham às vezes: formava-se então um grande quino. Amaro e Amélia ficavam sempre juntos; e toda a noite, com os joelhos colados, ambos vermelhos, permaneciam vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.

      Amaro saía sempre de casa da S. Joaneira mais apaixonado por Amélia. Ia pela rua devagar, ruminando com gozo a sensação deliciosa que lhe dava aquele amor - uns certos olhares dela, o arfar desejoso do seu peito, os contatos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se depressa, porque gostava de pensar nela, às escuras, atabafado nos cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma, as provas sucessivas


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