Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo
que nunca experimentamos, e que são para nós verdadeiros fenômenos do mundo fisiológico.
Águas imensas serviam de lajeamento ao majestoso templo, que tinha por abóbada o céu sem limites. À visão física escapavam as colunas e paredes dessa catedral-mundo, as quais a minha imaginação fora colocar além dos horizontes invisíveis do Atlântico.
Do lado do norte quebravam a monotonia da superfície envoltos nos vapores matutinos uns como rudimentos gigantescos de arcadas colossais. Em outras quaisquer condições cósmicas esses rudimentos apresentar-se-iam à minha vista como grandiosas ruínas; ali não; que se afigura ao espírito de quem os observa, é uma coisa Indizível; afigura-se que essas arcadas estão em começo de construção e se destinam a romper o céu, porque no meio daquele suntuoso impossível poder-se-á dizer que nenhum átomo tem o direito de se deixar destruir; quando tudo não exista ali ab initio, quando tudo não tenha ali uma vida que não teve princípio e que não há de ter fim, só o que resta ao corpo é nascer, agigantar-se, eternizar-se na matéria, que não acabará senão no fim dos tempos.
O que eu via e acabo de apontar não era outra coisa que a região amazônica que começava a desenhar-se risonha, azulada, esplêndida. Eram ilhas sem-número, umas de comedidas dimensões, outras de descomunal amplitude, todas elas multiformes, marchetando aqui as águas, bordando ali o continente coberto de uma espessa crosta de verdura.
Quem não entrou ainda nesse mundo novo onde ao homem que pela primeira vez nele penetra, se afigura não ter sido precedido por um único sequer dos seus semelhantes; onde há léguas e léguas que ainda não foram pisadas por homem civilizado, e onde há rios que só a canoa do índio tem fendido, não pode formar idéia dessa esplêndida maravilha.
Quando me achei, não em face mas no seio daquela natureza (porque em breve me vi cercado de ilhas, das quais algumas podem comparar-se a continentes, em que todas as direções iam ficando ou aparecendo), natureza a que a minha imaginação tinha dado formas incríveis, filhas da visão íntima, reconheci só então quanto em seus vãos arroubos me havia a fantasia deixado aquém da realidade.
Nada do que fui descobrindo conformava com as paisagens que eu traçara e colorira na mente não obstante as proporções gigantescas, as linhas corretas, as cores variadas, os matizes estupendos com que eu as tinha feito surgir de minha palheta. Pálidos e somenos hão de ser sempre diante daquela realidade a modo de fortuita os sonhos do maior imaginar.
Muito se há escrito do Pará e Amazonas desde que foram descobertos até nossos dias. Que valem porém todos os escritos e narrações de viagem a semelhante respeito? Quase nada.
O que eles nos põem diante dos olhos é o traço hirto, e não o músculo vivo e hercúleo; é a ruga, e não o sorriso; é a penumbra, e não o astro; o que eles nos oferecem são formas tesas e secas em lugar dos contornos brandos, delicados e flexíveis dos imensos panoramas e transparentes perspectivas dessas regiões paradisíacas.
Como pintar as miríades de ilhas, rios, furos, igarapés, que se mostram aos olhos do viajante desde a foz do grande rio, desde a confluência deste com os outros rios, que não têm conta, até suas nascentes, que durante muitos anos ainda hão de ser quase inteiramente desconhecidas? Como pintar tais imensidades, se vencer um desses rios, um desses furos, um desses igarapés, deixar atrás ou de lado uma, dez, cem ilhas, é o mesmo que penetrar em novos igarapés, novos furos, novos rios, contornar novas ilhas.
Nem sempre porém a natureza sorri, ou protege, ou abraça; às vezes ela encoleriza-se e, trocando os afagos da mãe carinhosa com as asperezas da madrasta desamorável, repele o homem por mil formas, e o impele para mil perigos.
A cólera, o açoite, a repulsa, o impulso, o puro franzir do sobreolho da madrasta irritada são terríveis manifestações; é a tempestade que afunda mil vidas — o homem, a cobra, a onça, a ave infeliz que passava trinando venturas; é a correnteza que desagrega, desfaz ilhas, e as apaga da superfície das águas, e arranca o cedro, a palmeira, os quais vão arrebatados no turbilhão, que os engole vestidos de virente folhagem para os vomitar escalavrados, nus, despedaçados, sórdidos.
A pedra não resiste. A revolução arrasta-a com rapidez inconceptível, e a vai levar em um momento a fundos abismos, que são outros tantos domicílios da vertigem e da morte. Com a pedra desapareceria a montanha, se tivesse a imprudência de ir surgir à frente, ou no meio daquelas impetuosas águas, que alagam, constringem, cavam, desmantelam, pulverizam praias, ribas, fragas e continentes.
— Que não seria deste mundo — pensei eu, descendo das eminências da contemplação às planícies do positivismo, — se nestas margens se sentassem cidades; se a agricultura liberalizasse nestas planícies os seus tesouros; se as fábricas enchessem os ares com seu fumo, e neles repercutisse o ruído das suas máquinas? Desta beleza, ora a modo de estática, ora violenta, que fontes de rendas não haviam de rebentar? Mobilizados os capitais e o crédito; animados os mercados agrícolas, industriais, artísticos, veríamos aqui a cada passo uma Manchester ou uma New York. A praça, o armazém, o entreposto ocupariam a margem, hoje nua e solitária, a cômoro sem vida e sem promessa; o arado percorreria a região que de presente pertence à floresta escura. O estado natural, espancado pelas correntes da imigração espontânea que lhe viessem disputar os domínios improdutivos para os converter em magníficos empórios, ter-se-ia ido refugiar nos sertões remotos donde em breve seria novamente desalojado. Uma face nova teria vindo suceder ao brilhante e majestoso painel da virgem natureza. Não se mostrariam mais aqui as tendas negras da fome e da nudez. O trabalho, o capital, a economia, a fartura, a riqueza, agentes indispensáveis da civilização e grandeza dos povos, teriam lugar eminente nesta imensidade onde vemos unicamente águas, ilhas, planícies, seringais sem-fim.
Mas por onde ando eu, meu amigo? Em que alturas vou divagando nas asas da fantasia? Venhamos ao assunto desta carta.
No Cabeleira ofereço-te um tímido ensaio do romance histórico, segundo eu entendo este gênero da literatura. À crítica pernambucana, mais do que a outra qualquer, cabe dizer se o meu desejo não foi iludido; e a ela, seja qual for a sua sentença, curvarei a cabeça sem replicar.
As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais no Norte, porém, do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra.
A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro.
A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as índoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuína expressão.
Por infelicidade do Norte, porém, dentre os muitos filhos seus que figuram com grande brilho nas letras pátrias, poucos têm seriamente cuidado de construir o edifício literário dessa parte do império que, por sua natureza magnificente e primorosa, por sua história tão rica de feitos heróicos, por seus usos, tradições e poesia popular há de ter cedo ou tarde uma biblioteca especialmente sua.
Esta pouquidade de arquitetos faz-se notar com especialidade no romance, gênero em que o Norte, a meu ver, pode entretanto figurar com brilho e bizarria inexcedíveis. Esta verdade dispensa demonstração. Quem não sabe que na história conta ele J. F. Lisboa, Baena, Abreu e Lima, Vieira da Silva, Henriques Leal, Muniz Tavares, A J. de Melo, Fernandes Gama, e muitos outros que podem bem competir com Varnhagen, Pereira da Silva e Fernandes Pinheiros; que o primeiro filólogo brasileiro, Sotero dos Reis, é nortista; que é nortista Gonçalves Dias, a mais poderosa e inspirada musa de nossa terra; e que igualmente o são Tenreiro Aranha, Odorico Mendes, Franco de Sá, Almeida Braga, José Coriolano, Cruz Cordeiro, Ferreira Barreto, Maciel Monteiro, Bandeira de Melo, Torres Bandeira, que valem bem Magalhães, A. de Azevedo, Varela, Porto Alegre, Casimiro de Abreu, Cardoso de Meneses. Teixeira de Melo?
No romance, porém, já não é assim. O Sul campeia sem êmulo nesta arena, onde têm colhido notáveis louros: Macedo, o observador gracioso dos costumes da cidade; Bernardo Guimarães, o desenhista fiel dos usos rústicos; Machado de Assis, cultor estudioso do gênero que foi vasto campo de glórias para Balzac;