Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo

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começou a anuviar-se.

      Joaquim, feroz por natureza, sanguinário por longo hábito, descarregou a parnaíba sobre a cabeça do primeiro que acertou de passar por junto dele. A cutilada foi certeira, e o sangue da vitima, espadanando contra a face do matador, deixou aí estampada uma máscara vermelha através da qual só se viam brilhar os olhos felinos daquele animal humano.

      José Gomes, por irresistível força do instinto que muitas vezes o traiu aos olhos do carniceiro pai, voltou-se de chofre e lhe disse:

      — Para que matar se eles fogem de nós?

      — Matar sempre, Zé Gomes — retorquiu o mameluco com as narinas dilatadas pelo odor do sangue fresco e quente que do rosto lhe descia aos lábios e destes penetrava na boca cerval. Não temos aqui um só amigo. Todos nos querem mal. É preciso fazer a obra bem feita.

      Este homem era o gênio da destruição e do crime. Por sua boca falavam as baixas paixões que à sombra da ignorância, da impunidade e das florestas haviam crescido sem freio e lhe tinham apagado os lampejos da consciência racional que todo homem traz do berço, ainda aqueles que vêm a ser depois truculentos e consumados sicários.

      Seu coração estava empedernido, seu senso moral obcecado.

      Nenhum sentimento brando e terno, nenhum pensamento elevado exercitava a sua salutar influência nas ações deste ente degenerado e infeliz.

      — Estás com medo, Zé Gomes, deste poviléu? Parece-me ver-te fraquear. Por minha bênção e maldição te ordeno que me ajudes a fazer o bonito enquanto é tempo. Não sejas mole, Zé Gomes; sê valentão como é teu pai[2].

      Tendo ouvido estas palavras, o Cabeleira, em cuja vontade exercitava Joaquim irresistível poder, fez-se fúria descomunal e, atirando-se no meio do concurso de gente, foi acutilando a quem encontrou com diabólico desabrimento. Como dois raios exterminadores, descreviam pai e filho no seio da massa revolta desordenadas e vertiginosas elipses.

      A geral consternação teria cessado em poucos instantes se o povo pudesse escapar pelas duas entradas da ponte. Achavam-se porém estas já tomadas por piquetes de infantaria às pressas organizados para embargarem a fuga aos matadores e reduzi-los à prisão.

      À medida que estes piquetes se foram movendo das extremidades para o centro, a população obrigada a aproximar-se dos assassinos, preferiu a este perigo atirar-se ao rio, e a baldeação não se fez esperar.

      Em poucos momentos os perturbadores da ordem acharam-se debaixo das vistas da força pública. O lugar da cena estava quase inteiramente desocupado. As colunas militares operaram um movimento único, indescritível. Carregaram sem demora sobre os delinqüentes que, à vista da estreiteza do passo e do cerco, só nas águas puderam, como as suas vítimas, achar salvação.

      Um soldado, impelido talvez primeiro pelo ímpeto da paixão que pela consciência do dever, o qual em ocasiões iguais àquela raramente fala mais alto que os instintos animais, atirou-se de arma em punho após os assassinos com o fim de apreender um dos dois, ainda que custasse a própria vida. Não logrou o seu intento este valente defensor da sociedade e da lei. Quando sua mão tocava em um dos delinquentes, de cima de uma canoa que nesse momento desatracara da ponte, desfecharam-lhe com a vara tão forte golpe sobre a cabeça, que o infeliz, perdendo os sentidos, foi arrebatado pela corrente. Igual cena se presenciou em 1821, figurando como vítima João Souto Maior que procurara salvar-se no rio depois de haver ferido com um tiro de bacamarte na ponte da Boa Vista o governador Luís do Rego Barreto.

      Assim se passou na vila do Recife a noite do primeiro domingo de dezembro de 1773, noite memorável, que principiou pela alegria e terminou pelo terror público.

      II

      POR entre as vítimas do terror que lutavam com as águas do Capibaribe nas sombras da noite deslizou indiferente a canoa onde ia o Teodósio, assassino do soldado que se atirara ao rio em busca dos delinqüentes.

      Teodósio, como os leitores hão de lembrar-se, viera só mas não voltava agora desacompanhado. José, taciturno e quieto, e rosnando como besta-fera que indiscreto caçador irrita em escuso bosque, testemunhavam ao pé do cabra, sentados na popa do fugitivo lenho, com os bacamartes nas mãos, o espetáculo de aflição e desespero; e, como se o fizessem de caso pensado para denotarem a pouca conta em que tinham uma sociedade que eles dois unicamente acabavam de entregar em alguns minutos à perturbação e à dor, pareciam afrontar com olhares insultuosos não somente os homens mas também aquele que ao fulgor das estrelas vê melhor do que os mortais à luz do dia, e que das alturas, onde paira, distribui por todos a sua indefectível justiça, tanto para premiar como para punir. Foi Deus o único que conheceu os três aventureiros rompendo as águas, o único que em suas frontes manchadas do sangue e do opróbrio recente leu o passado que os condenava e o futuro que por eles esperava para justiçá-los com a excessiva severidade que havemos de ver.

      Os náufragos só trataram de salvar-se e fugir; qual se agarrasse aos mangues, então muito bastos e numerosos, que bordam o rio como ilhas de verdura, qual demandasse, a fim de escapar da inclemência da corrente, os bancos de areia formados pelo fluxo e refluxo das marés. Ninguém cuidou mais no Cabeleira senão para se distanciar com horror crescente da sua sombra cruel, do seu vulto fatal e ominoso.

      Achavam-se na ponte o pai e o filho, não para serem socorridos, como foram, pelo companheiro, mas para protegerem a sua fuga, caso fosse ele descoberto antes de haver concluído o roubo que assentaram de praticar em um dos armazéns. A denúncia do matuto transtornara esta combinação pela forma que o leitor conhece, não impedindo porém que no essencial viesse ela a verificar-se, porque, ouvindo o trovão do alarido e fazendo conta que o conflito fora provocado pelos amigos como meio de concentrar em um só ponto as gerais atenções a fim de deixá-lo ao abrigo de qualquer surpresa, tratara Teodósio de aproveitar o tempo com a prontidão e perícia que lhe eram habituais em semelhante gênero de ocupação.

      Na extremidade de uma vara fora acinte atado um ferro adunco para facilitar o escalamento. Prendê-lo na varanda do armazém, subir pela longa haste até à estiva, passar desta à janela, e saltar dentro fora obra de um instante para o Teodósio. Em poucos minutos quinquilharias preciosas, armas de fogo, perfumarias, miudezas de toda sorte desceram por cordas em suas caixas ou pacotes para a canoa. As gavetas, primeiro que as vidraças foram violadas e revistadas, e o dinheiro que continham passara a povoar o bolso do atrevido roubador.

      São tradicionais os roubos que deste modo se praticaram na ponte do Recife por aqueles tempos e durante muitos anos depois. Segundo contam os antigos, eles reproduziram-se no começo deste século com tanta frequência, que os armazéns ao princípio com razão cobiçados pelos comerciantes, perderam de valor, e ficariam de todos depreciados se a polícia, por uma rigorosa vigilância que lhe faz honra, não houvesse impedido a continuação destes atentados.

      Quando não houve mais objeto de preço que baldear, Teodósio desceu. Era tempo. Ainda bem não tinha terminado o seu aéreo trajeto, quando dois corpos surgiram dentre ruidoso espumeiro produzido por violenta queda e passaram-se à embarcação. Eram Joaquim e José Gomes que se haviam atirado ao rio para escaparem à prisão, como vimos.

      A escuridão que reinava no Capibaribe, as auras da noite e uns restos da enchente favoreceram a evasão dos navegantes. Mantendo-se a igual distância das duas margens, o improvisado canoeiro, ao passo que se subtraía a qualquer inspeção do lado da terra, era arrebatado com os hóspedes pelas águas do canal que são profundas e correm ali com impetuosidade.

      Em pouco tempo, contornando o palácio do governador, e deixando à direita o forte Waerdenburch construído em 1631 nas Salinas, hoje Santo Amaro, pelos holandeses que lhe deram esta denominação para honrarem o seu general Diederik van Waerdenburch, seguiu no rumo do sul rompendo, por entre ilhas de mangues, a escuridão e as águas.

      Entre as casas de que por esse tempo se compunha a povoação dos Afogados contava-se a de um colono por nome Timóteo, sujeito pontista, como tal conhecido das vizinhanças, e por isso mesmo buscado sempre que se tratava de realizar qualquer transação ilícita ou simplesmente equívoca.


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